quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Os justos

Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sur jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto.
O que acaricia um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão salvando o mundo.

- Jorge Luís Borges

Quanto mais forte for o homem,

Mais estará sozinho -  é uma questão de matemática. E se tiver que passar a vida em hospícios ou em fábricas de aviões, isso em nada alterará sua dor... ou sua grandeza.

[Bukowski em Pedaços de uma caderno manchado de vinho]

terça-feira, 27 de novembro de 2018

a ordem do dia é a perseverança.

depois de tanta desistência,
duras decadências
em vestes de opulência,
eis a minha insistência:

o choro sobe a garganta
sufoca e volta,
pela minha espinha desce.
não choro, fico aguada
minha alma enrijece.

sinto a vontade de extravasar
ao ver pessoas que se superaram
não desistiram, insistiram
seja por competitividade,
só preferencia ou necessidade.

estou sensível
agora que me quero livre
de pensamentos obsessivos,
agora que me tenho viva
e determinada.

me afeta tanto,
me importa tanto
ver outros exemplos
de pessoas impávidas.

concluo:
ser louca é o mais sensato,
num mundo onde
o rebanho de desajustados
são as ovelhas mais saudáveis.


Não se arrependa, ó, bela,

não caia da cama
não fuja, não voe
sem asas
do seu ninho de horror, ó, bela.

[Bruno Alcântara]

O Sobrevivente

Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema – uma linha que seja – de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.

Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.

Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta
muito para atingirmos um nível razoável de
cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.

Os homens não melhoram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heroicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

Desconfio que escrevi um poema.

[Carlos Drummond de Andrade]




Por mais que eu queira

deseja secretamente
ardentemente

não conseguimos derrubar
o muro que, desconfiada,
construí ao meu redor.

- traumatizada -
como você mesmo disse,
induzida a sentir pavor.

por isso frustrada
e triste
me declaro:

você não é o meu amor.

Você não precisa ser

o que não é
só para se igualar a eles.

você não está
no mesmo nível que eles.

eles, elas, essas almas livres,
inquietas e safadas
que não entendem

minha reclusão
e tradição,
inquietação contrária.

eu gosto de admirá-las,
posso até mesmo invejá-las.

mas o que contemplo
verdadeiramente
é o meu templo

de solidão ária.

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Arte de amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

[Manuel Bandeira]
"O papel do escritor não pode ser separado da realidade. Sejam quais forem nossas enfermidades, a nobreza da profissão está enraizada em dois compromissos difíceis de se manter: a recusa de mentir sobre o que sabemos e a resistência à opressão."

[Albert Camus, Un Combat Contre l'absurde" (1996)]

domingo, 11 de novembro de 2018

sentados na sala


e há um quilômetro de palavras
entre nós

nós na garganta
amarram toda uma trama
que outrora fora chama

que inflama
dentro de nós
entrelaçados na cama

agora o meu drama
são apenas somas
de nós do passado

que ainda não foram desfeitos
espelham todos nossos defeitos
e nos deixam despedaçados