domingo, 27 de janeiro de 2019

alegria do abandono

certas coisas prefiro
não enxergar

fingi não vi
fingi não sentir
fingi acreditar

fingir ser o melhor
pra mim
e esperar...

algo que não seja mentira
algo que não cause intriga
algo pra me libertar...

a forma como me tratas
tão rude
que não pude acatar

mais uma vez, mais uma farsa
me ilude
em virtude do amar

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Às vezes tenho ideias, felizes,

Ideias subitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despegam...
Depois de escrever, leio...
Por que escrevi isso?
Onde fui buscar isso?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?...
_Álvaro de Campos

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Murmúrio

Traze-me um pouco das sombras serenas
Que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
- vê que nem te peço alegria.

Traze-me um pouco da alvura dos luares
Que a noite sustenta no teu coração!
A alvura, apenas, dos ares:
- vê que nem te peço ilusão.

Traze-me um pouco da tua lembrança
Aroma perdido, saudade da flor!
Vê que nem te digo - esperança!
Vê que nem sequer sonho - amor!

Cecília Meirelles

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Porque os outros se mascaram mas tu não

Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

= Sophia de Mello Breyner