domingo, 31 de maio de 2020

Poema da necessidade

É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades
é preciso substituir nós todos.

É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbado,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.

É preciso viver com os homens
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar O FIM DO MUNDO.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 30 de maio de 2020

Resisto

De onde vem este medo?
sou
sem mistério existo
busco gestos
de parecer
atando os feitos
que me contam
grito
de onde vem
esta vergonha
sobre mim?

Eu, mulher, negra,
RESISTO.

lzira dos Santos Rufino

Poema de Amor

Esta noite sonhei em oferecer-te o anel de Saturno
E quase ia morrendo com o receio de que não te coubesse no dedo.

Jorge Sousa Braga.

sábado, 23 de maio de 2020

Amor Cinza

Na linha do horizonte tem um fundo cinza
Pra lá dessa linha eu me lanço, e vou

Não aceito quando dizem que o fim é cinza
Se eu vejo cinza como um início em cor

Quando tudo finda, dizem, virou cinza
Equívoco pois cinza cura, poesia eu sou

O traje cinza lembra fidalguia
Quarta-feira cinza é dia de louvor

Vamos celebrar, o amor há de renascer das cinzas
Vamos festejar o cinza com amor

Gota de orvalho prateada é cinza
Massa encefálica é cinza, amor

A purificação também se faz com cinza
Fênix renasceu das cinzas com honor

Só quero dengo quando o dia é cinza
Ler poesia e cantar ao sol

Dedilho a viola e sonho colorido
E vejo no amante que o cinza desnudou

Vamos celebrar, o amor há de renascer das cinzas
Vamos festejar o cinza com amor...

Mateus Aleluia


*nem vou dizer que cinza é a minha cor rs

sexta-feira, 22 de maio de 2020

As ruínas de Selinunte

Correspondendo a fragmentos de astros,
A corpos transviados de gigantes,
A formas elaboradas no futuro,
Severas tombando
Sobre o mar em linha azul, as ruínas
Severas tombando
Compõem, dóricas, o céu largo.
Severas se erguendo,
Procuram-se, organizam-se,
Em forma teatral suscitam o deus
Verticalmente, horizontalmente.

Nossa medida de humanos
– Medida desmesurada –
Em Selinunte se exprime:
Para a catástrofe, em busca
Da sobrevivência, nascemos.


Murilo Mendes

Se estou equivocada, favor, corrija-me

Bolsonaro é o pior agravante da crise do corona no Brasil, isso não tem discussão. Mas o vírus se alastrou dessa forma, principalmente nas periferias, pela falta de estrutura nas cidades, e isso é responsabilidade de todos os governantes atuais e antigos.

A maioria dos lugares não tem um sistema de água encanada realmente segura, não tem tratamento de esgoto, nas instituições de saúde e educação sofremos com a falta de profissionais e materiais desde: sempre; até as pessoas contempladas por programas sociais se acostumaram com esses paliativos de bolsa família etc, ao invés de entender a necessidade da reforma agrária e da taxação de grandes fortunas para diminuir de fato a desigualdade. A cultura sempre teve q esperar pela boa vontade de editais ao invés da criação de uma mercado artístico que incentive o consumo e q ao mesmo tempo possa suprir o trabalho, os bancos sempre receberam recursos do governo com o argumento de facilitar crédito pras pessoas e pequenas empresas, mas sempre usaram esses recursos em favor próprio (especulação e propinas).

Nada mudou, piorou muito. Pelo q vejo nas manchetes, outros movimentos independentes como MST, quilombolas, coletivos e pessoas individuais que estão realmente tentando tapar os buracos deixados por décadas de desgoverno, gente que nem grana tem dando o mínimo pra ajudar sua comunidade. O resto é politicagem e vocês parecem retardados defendendo políticos.

Deaculpaê, mas critico Lula e afins antes de ser modinha kkkkkkkk ele não merece voltar. Discurso fascista é de quem não permite a expressão das diversas opiniões e ainda continuam defendendo a centralização do Estado na figura de um "Messias salvador da pátria"

terça-feira, 19 de maio de 2020

''Depois que escurece, o bagulho é doido''

A data de hoje, em 1925, é o dia do nascimento de Malcolm X, o mesmo dia em que, 95 anos depois, acordo com a notícia de que mais uma criança preta foi assassinada em uma operação da polícia. Não me interessa se os brancos sabem quem foi ele, não me interessa até mesmo se pretos acadêmicos submetidos às ideologias de brancos estudem sobre ele (podendo eu mesma estar nesse grupo). O que me questiono é como as favelas, as periferias, os guetos não o conhecem, se justamente esse era o público-alvo dele?

Penso que se o conhecessem, o grupo de traficantes não entraria na casa de inocentes para fugir da PM resultando em mortes de mais crianças pretas marginalizadas; penso que esse grupo de traficantes poderia ser um dos braços armados do movimento negro organizado, com leis próprias, poderia continuar com atividades ilícitas sim para capitar recursos e burlar esse sistema racista sem colocar vidas pretas em risco, principalmente a de crianças; penso que a população preta unida poderia adotar estratégias como rotas de fuga das autoridades sem resultar em mortes inocentes, e sobretudo, essas autoridades não teriam pretos capitães do mato para usar como massa de manobra, não existiriam pretos dentro da polícia militar; penso que se o conhecessem realmente, seria adotada uma postura moral, muitos comportamentos que nos levam ao precipício seriam abandonados, como o vício em drogas, especialmente o álcool e a cocaína, o estímulo à ostentação capitalista, a violência doméstica, a depravação sexual e a prostituição.

Ele pregava uma postura, de combate ao racismo e de proteção e organização preta, e eu acredito que é justamente isso que nos falta: postura; a liberdade pra mim não é você poder fazer o que quiser, sem arcar com as consequências, penso que liberdade é ter a capacidade de reflexão e poder escolher o melhor pra si e para os outros, buscando o equilíbrio e assumindo o resultado dessa escolha. A sociedade pode definir o meio em que vivemos, mas nós é que escolhemos a nossa conduta.

Pra falar a verdade, eu nem o conheço bem também, talvez por isso eu só... penso, e não faço nada demais para agir.

O dia chora.

sábado, 16 de maio de 2020

Gasolina, garrafa, pedaço de pano

A arma do povo contra o estado é o próprio povo
Um novo homem, nova sociedade baseada em liberdade
Estão nos matando, por que não matá-los?
Estamos apenas nos defendendo
Extinção de classes, apenas igualdade
É isso que estamos querendo

- Life Is A Lie

Carne

Carne de cobaia iraquiana
John Wayne, estupre uma criança
Bento XVI, Vire-se a Meca
Bush, dê-nos esperança!

Petróleo é de beber com um gosto de amargar
O sangue faz a máquina girar
Morre um ditador na América do Sul
César! Fogo! Nu!

Isso é religião, política, loucura
Meu Deus! Osama nas alturas!
Os seus cowboys vampiros têm os olhos azuis
Tirem esse índio dessa cruz!

O clone do humano, o clone da ovelha
O rosto de Jesus na imagem da besta
Montados em seus cavalos exterminando os negros
O lixo, o resto, o feio

O mundo é uma maravilha, mas não posso viver
Pois sinto nojo de tudo que vejo
Inclusive na minha cara cínica no espelho
O que me deixa em intenso desespero

Essas engrenagens querem me amassar
Eu quero deixar de existir

As cenas de terror que não saem da minha mente
Nunca mais vou conseguir sorrir

Tem sentido procriar?
Pra onde prosseguir?

Mukeka di Rato

quinta-feira, 14 de maio de 2020

SEMPRE HAVERÁ DESIGUALDADE

... mas essa diferença precisa ser cruel?

UMA PAIXÃO

Visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores

vem ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos

vem antes que desperte em mim o grito
de alguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro

perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água

vem com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te


FORAM BREVES E MEDONHAS AS NOITES DE AMOR
foram breves e medonhas as noites de amor
e regressar do âmago delas esfiapava-lhe o corpo
habitado ainda por flutuantes mãos

estava nu
sem água e sem luz que lhe mostrasse como era
ou como poderia construir a perfeição

os dias foram-se sumindo cor de chumbo
na procura incessante doutra amizade
que lhe prolongasse a vida

e uma vez acordou
caminhou lentamente por cima da idade
tão longe quanto pôde
onde era possível inventar outra infância
que não lhe ferisse o coração


RESPOSTA À EMILE
A guerra daqui não mata - mas abre fissuras
Nos nervos - é o que te posso dizer
Deste país que escolhi para definhar

A cidade é u amontoado de lixo de tapumes
De sucata e de casas que se desmoronam
A realidade estragou os olhos das crianças

No fim do corpo em que me escondo espalhou-se
A treva onde
Guardo a corola azulínea de tua ausência

E o marulho nítido de um mar que canta
E um calor sísmico nos lábios que beijaste

É - me difícil continuar a escrever-te
O que me destrói - sei que estou fodido
E tu já não és meu

Preparo-me para entreabrir os olhos e
Deixar escorrer a convulsão oleosa das lágrimas
E das coisas tristes.


A PAISAGEM PROLONGA-SE
a paisagem prolonga-se num S de flores azuladas
ela entra nas ruínas
junto ao ângulo penumbroso da casa destruída
está vestida de branco quando ele lhe fala
ambos têm o olhar vago
ela recorta-se sobre um fundo de árvores nuas
ele está de pé encostado a um muro de pedra
ouve-se alguém dizer: não tenhas medo
so
somos apenas actores dum sonho paralelo à paisagem
os lábios dela tremem ou sorriem
ele encolhe-se mais contra a parede
o silêncio ainda não os abandonou
ela espreita-o
ele desenha-se exacto no centro do écran
(de novo uma voz off)
um vento vertical adere à casa
onde as raízes dos cardos irrompem dos alicerces
e quando ela se vira para o interior das ruínas
prende-se-lhe o olhar num ponto inexistente
ele já ali não está
apenas a objectiva da câmara continua a segui-la


LÁPIDE, DE «CARTA DA ÁRVORE TRISTE»
a contínua solidão torna-se claridade
iridiscência lume
que incendeia o coração daquele cujo ofício
é escrever e olhar o mundo a partir da treva
humildemente
foi este o trabalho que te predestinaram
viver e morrer nesse simulacro de inferno

meu deus! tinha de escolher a melhor maneira de arder
até que de mim nada restasse senão osso
e meia dúzia se sílabas sujas

« Al Berto »

POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

MANUEL BANDEIRA

Sonhei

Sonhei que estava morta
Vi um corpo no caixão
Em vez de flores eram Iivros
Que estavam nas minhas mãos
Sonhei que estava estendida
No cimo de uma mesa
Vi o meu corpo sem vida
Entre quatro velas acesas

Ao lado o padre rezava
Comoveu-me a sua oração
Ao bom Deus ele implorava
Para dar-me a salvação
Suplicava ao Pai Eterno
Para amenizar o meu sofrimento
Não me enviar para o inferno
Que deve ser um tormento

Ele deu-me a extrema-unção
Quanta ternura notei
Quando foi fechar o caixão
Eu sorri… e despertei.

– Carolina Maria de Jesus, em “Antologia pessoal”. 


Quarto de despejo

Quando infiltrei na literatura
Sonhava so com a ventura
Minhalma estava chêia de hianto
Eu nao previa o pranto. Ao publicar o Quarto de Despejo
Concretisava assim o meu desejo.
Que vida. Que alegria.
E agora… Casa de alvenaria.
Outro livro que vae circular
As tristêsas vão duplicar.
Os que pedem para eu auxiliar
A concretisar os teus desejos
Penso: eu devia publicar…
– o ‘Quarto de Despejo’.

No início vêio adimiração
O meu nome circulou a Nação.
Surgiu uma escritora favelada.
Chama: Carolina Maria de Jesus.
E as obras que ela produz

Deixou a humanidade habismada
No início eu fiquei confusa.
Parece que estava oclusa
Num estôjo de marfim.
Eu era solicitada
Era bajulada.
Como um querubim.

Depôis começaram a me invejar.
Dizia: você, deve dar
Os teus bens, para um assilo
Os que assim me falava
Não pensava.
Nos meus filhos.

As damas da alta sociedade.
Dizia: praticae a caridade.
Doando aos pobres agasalhos.
Mas o dinheiro da alta sociedade
Não é destinado a caridade
É para os prados, e os baralhos

E assim, eu fui desiludindo
O meu ideal regridindo
Igual um côrpo envelhecendo.
Fui enrrugando, enrrugando…
Petalas de rosa, murchando, murchando
E… estou morrendo!

Na campa silente e fria
Hei de repousar um dia…
Não levo nenhuma ilusão
Porque a escritora favelada
Foi rosa despetalada.
Quantos espinhos em meu coração.
Dizem que sou ambiciosa
Que não sou caridosa.
Incluiram-me entre os usurários
Porque não critica os industriaes
Que tratam como animaes.
– Os operários…

– Carolina Maria de Jesus, em “Meu estranho diário”

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Poema -

Eu hoje tive um pesadelo e levantei atento, a tempo
Eu acordei com medo e procurei no escuro
Alguém com seu carinho e lembrei de um tempo
Porque o passado me traz uma lembrança
Do tempo que eu era criança
E o medo era motivo de choro
Desculpa pra um abraço ou um consolo

Hoje eu acordei com medo, mas não chorei
Nem reclamei abrigo
Do escuro eu via um infinito sem presente
Passado ou futuro
Senti um abraço forte, já não era medo
Era uma coisa sua que ficou em mim
De repente a gente vê que perdeu
Ou está perdendo alguma coisa
Morna e ingênua
Que vai ficando no caminho
Que é escuro e frio, mas também bonito
Porque é iluminado
Pela beleza do que aconteceu
Há minutos atrás

 Roberto Frejat / Agenor Neto

A melancolia,

a reflexão sobre a infelicidade consumada, nada tem a ver com o vulgar desejo de morte. É uma forma de resistência. E, sobretudo ao nível da arte, a sua função está longe de ser meramente reativa ou reacionária. Quando ela, de olhar fixo, pensa uma vez mais no que nos arrastou até aqui, bem se vê que o impulso que leva ao desespero e o que leva ao conhecimento são agentes idênticos. A descrição da infelicidade traz em si a possibilidade de a superar.

 W.G.Sebald