sábado, 27 de maio de 2017

às 3h17 de uma madrugada melancólica com Fernando Pessoa...

Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.
A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio
Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;
O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é;
A glória concede e nega; não tem verdades a fé.
Por isso na orla morena da praia calada e só,
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.
Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,
Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,
Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.
Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,
Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.


terça-feira, 23 de maio de 2017

escombros #3

Corpos jovens mutilados
Pela pressão de uma sociedade submissa
Conformada em permanecer doente
Por ambições ilusórias e perfeição inexistente

Hostilizados em público
Taxados de desocupados, drogados, os sem-jeito
Quando todos em suas intimidades hipócritas
Tem seus vícios e defeitos

Compartilhar teorias e
Desabafar ideias
Pensar mágoas e
Amenizar sofrimentos

Violentados desde o nascimento
Moral para controle mental
Valores inúteis e informações erradas
Somos páginas ensanguentadas

Nascidas com o destino pré-determinado
Definido pela nossa própria história
Até a vida deixar de ser escória,
Há tormentos e lamentos a serem superados.


quinta-feira, 18 de maio de 2017

meu partido é um coração partido

A moral e a ética as quais eu sigo, 
a ideologia a qual vivo,
se originam na lógica do bem estar social
por vontade própria e livre querer 
ou estou apenas reproduzindo discurso alienado 
de quem me quer na linha sem pensar?

Pois não respeitam o que faço e quem eu sou.
Irão usar da minha inteligência e força de trabalho,
depois descartá-los como lixo.
A quem sirvo?
Que ideal dita minhas ações?

O pequeno vagabundo (William Blake)


Querida Mãe, Querida Mãe, a igreja é fria
Mas a taverna é saudável, agradável e quente;
E posso dizer que lá me tratam bem.
Pois nem no céu passaria tão bem.

Mas se na Igreja Cerveja  pudessem dar
E um bom fogo a nossas almas regalar,
Por todo o dia rezaríamos e cantaríamos,
E da Igreja jamais nos afastaríamos.

Então o Pastor poderia pregar e beber e cantar
Seríamos tão felizes qual aves primaveris a voar,
E a Senhora Bebedeira, sempre na Igreja em oração,
Não teria filhos franzinos, nem jejum nem punição.

E Deus como um pai que se regozija em ver
Seus filhos como ele, amáveis e felizes a valer,
Não teria mais querelas com o Diabo e o Barril,
Mas lhe daria vestes, bebida e beijos mil.


segunda-feira, 15 de maio de 2017

Cartão Postal (trecho) Apanhador Só

Comprei uma asa delta
Pra tentar um voo...
Tentei, não consegui
Mas vou tentar de novo
O problema é que eu não sei
Como subir no morro
E é preciso estar no alto
Pra se atirar.
Não achei nenhum caminho,
Mas tá escrito:
Vou tentar de novo.

domingo, 14 de maio de 2017

"fiquei à vontade pra ficar na vontade"

primeira vez em muito tempo
que me sinto contemplada
com o que sinto e penso.

distrações são inevitáveis
e tem sua utilidade
pra minha sanidade,
mas podem vir a ser nocivas
quando muito irresponsáveis.

mergulhei fundo
em olhares e bocas,
caminhei por ruas estreitas
e curvas sinuosas
de alguns corpos que visitei.

mas fui negligente
comigo mesma e me perdi.
me perdi de mim.

quando me encontrei,
dolorida e desgostosa,
percebi que não é necessário
se apegar a desejos passageiros
numa carência desesperada
do sentir e ser tocada.

minhas necessidades reais,
ainda aquelas frugais,
precisam mais urgentemente
serem satisfeitas
que qualquer paixão barata.

estou cansada de correr
pra chegar ao nada.
de tentar desbravar águas rasas.
farta, mas salva
com a ideia de que a vida é muito curta
para não tentar evoluir
e muito longa para não persistir,
 caso seja difícil demais.

e falo isso
com uma tranquilidade
que chega a me assombrar
por sua forma tão calma de assistir ao caos.

ressurgi.

terça-feira, 9 de maio de 2017

Mero capricho

seus olhos expressivos
contrastam
com o insosso dos seus gestos.

o entusiasmo em seu toque
não condiz
com o mesquinho de sua fala.

o cuidado em se guardar
e se moldar
para não se mostrar demais

complementando o desejo
ansioso, curioso
que em mim veio a deflagrar.

o gozo não segue protocolos.
meu apetite de você
é um atentado ao pudor.

a nossos beijos não cabe prudência.
e essa distância, meu bem
é mero capricho
pra minha libido.



Poética (Manuel Bandeira)

Estou farto do lirismo comedido 
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja 
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

domingo, 7 de maio de 2017

Quási (Mário de Sá-Carneiro)

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que,desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...


Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão' 



(Charles Darwin, A Viagem do Beagle)

“Perto do Rio de Janeiro, minha vizinha da frente era uma velha senhora que tinha umas tarraxas com que esmagava os dedos de suas escravas. Em uma casa onde estive antes, um jovem criado mulato era, todos os dias e a todo momento, insultado, golpeado e perseguido com um furor capaz de desencorajar até o mais inferior dos animais. Vi como um garotinho de seis ou sete anos de idade foi golpeado na cabeça com um chicote (antes que eu pudesse intervir) porque me havia servido um copo de água um pouco turva… E essas são coisas feitas por homens que afirmam amar ao próximo como a si mesmos, que acreditam em Deus, e que rezam para que Sua vontade seja feita na terra! O sangue ferve em nossas veias e nosso coração bate mais forte, ao pensarmos que nós, ingleses, e nossos descendentes americanos, com seu jactancioso grito em favor da liberdade, fomos e somos culpados desse enorme crime.”