quinta-feira, 30 de novembro de 2017

"Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.
O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo.
Trêmulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?"



[F. Pessoa]

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Sem nada de meu

Dei-me inteiro. Os outros
fazem o mundo (ou crêem
que fazem) . Eu sento-me
na cancela, sem nada
de meu e tenho um sorriso
triste e uma gota
de ternura branda no olhar.
Dei-me inteiro. Sobram-me
coração, vísceras e um corpo.
Com isso vou vivendo.

[Rui Knopfli]

sábado, 25 de novembro de 2017

Amor de Schrödinger

“Leve em consideração que, se alguém não te ama, sempre terá alguém que vai te amar”.

Os Truques do Discurso Político

Parecemos estupefactos ao ver a multidão ser conduzida por meros sons, mas devemos lembrar-nos que, se os sons operam milagres, é sempre graças à ignorância. A influência dos nomes está na proporção exacta da falta de conhecimento. De facto, até onde tenho observado, na política, mais que em qualquer outra área, quando os homens carecem de alguns princípios fundamentais e científicos aos quais recorrer, eles tornam-se aptos a ter o seu entendimento manipulado por frases hipócritas e termos desprovidos de sentido, dos quais todos os partidos em qualquer nação têm um vocabulário.

[William Paley]

Ser Livre


É mais difícil ser livre do que puxar a uma carroça. Isto é tão evidente que receio ofender-vos. Porque puxar uma carroça é ser puxado por ela pela razão de haver ordens para puxar, ou haver carroça para ser puxada. Ou ser mesmo um passatempo passar o tempo puxando. Mas ser livre é inventar a razão de tudo sem haver absolutamente razão nenhuma para nada. É ser senhor total de si quando se é senhoreado. É darmo-nos inteiramente sem nos darmos absolutamente nada. É ser-se o mesmo, sendo-se outro. É ser-se sem se ser. Assim, pois, tudo é complicado outra vez.
É mesmo possível que sofra aqui e ali de um pouco de engasgamento. Mas só a estupidez se não engasga, ó meritíssimos, na sua forma de ser quadrúpede, como vós o deveis saber.

[Vergílio Ferreira]

sábado, 18 de novembro de 2017

Pessoa, 1925

A espantosa realidade das coisas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.
Hei-de escrever muitos mais, naturalmente.
Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada coisa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada,
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem esforço,
Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos,
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer coisa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.



Ontem percebi que ano que vem vão fazer dez anos que bebo. Entre idas e vindas, porres e ressacas, não estou mais feliz, realizada nem satisfeita mas pelo menos não me matei, não diretamente, não decisivamente. Aos poucos, talvez, ainda esteja me matando. Aos poucos, talvez, morremos desde que nascemos. Eu sei que historicamente o álcool foi a principal distração usado pelos exploradores nos povos conquistados para que permanecessem pacíficos embriagados e consumidores viciados assinando suas próprias sentenças de morte. E, atualmente, culturalmente vemos a bebida como um escape das obrigações e frustrações que enfrentamos diariamente. Escravos do século 21 que precisam de algum entretenimento para que esqueçam de lutar por um sistema melhor. Divertimento lícito de causa mórbida e futuro sombrio. Gerando capital para grandes empresas continuarem lucrando em cima da desgraça alheia. Mesmo consciente disso e de outras realidades degradantes, não sinto vontade de ser saudável, não sinto vontade de parar de beber, muito pelo contrário, caio na desgraça, feitiçaria e sedução por livre e espontânea pressão, por indecente e moldada vontade.

A todo momento me pergunto: o que você faz, Maria, daquilo que te fizeram? Parte de mim sente amor e quer transformar cada miséria em uma forma singela de gentileza e evolução. Como se assim, fosse superior a quem causa dor. Mas o exercício diário de convivência faz essa parte de mim ser muito pequena. A outra parte, que se faz mais presente, sente raiva e desprezo. Sente vontade de gerar violência e sentir dor. E assim me torno tão medíocre a ponto de sentir vergonha da minha capacidade de ser melhor e me orgulho por estar tão parecida com as pessoas à minha volta. Eu sinto vontade de fazer coisas ruins, não gosto, mas não me controlo também. E isso não é uma dualidade, senão uma mistura do que me ocorre todos os dias. Quero evoluir mas não quero ir sozinha.



quarta-feira, 15 de novembro de 2017

in "O eu profundo e os outros eus"

Um vento de sombras sopra cinzas de propósitos mortos sobre o que eu sou de desperto. Cai de um firmamento desconhecido um orvalho morno de tédio. Uma grande angústia inerte manuseia-me a alma por dentro, incerta, altera-me como a brisa aos perfis das copas.

- Sou todo confusão quieta.

{{  tentando não morrer de tédio. }}

O falso mendigo - Vinicius

Rio de Janeiro , 1938

Minha mãe, manda comprar um quilo de papel almaço na venda
Quero fazer uma poesia.

Diz a Amélia para preparar um refresco bem gelado
E me trazer muito devagarinho.
Não corram, não falem, fechem todas as portas a chave
Quero fazer uma poesia.
Se me telefonarem, só estou para Maria
Se for o Ministro, só recebo amanhã
Se for um trote, me chama depressa
Tenho um tédio enorme da vida.
Diz a Amélia para procurar a “Patética” no rádio
Se houver um grande desastre vem logo contar
Se o aneurisma de dona Ângela arrebentar, me avisa
Tenho um tédio enorme da vida.
Liga para vovó Neném, pede a ela uma ideia bem inocente
Quero fazer uma grande poesia.
Quando meu pai chegar tragam-me logo os jornais da tarde
Se eu dormir, pelo amor de Deus, me acordem
Não quero perder nada na vida.
Fizeram bicos de rouxinol para o meu jantar?
Puseram no lugar meu cachimbo e meus poetas?
Tenho um tédio enorme da vida.
Minha mãe estou com vontade de chorar
Estou com taquicardia, me dá um remédio
Não, antes me deixa morrer, quero morrer, a vida
Já não me diz mais nada
Tenho horror da vida, quero fazer a maior poesia do mundo
Quero morrer imediatamente.
Fala com o Presidente para fecharem todos os cinemas
Não aguento mais ser censor.
Ah, pensa uma coisa, minha mãe, para distrair teu filho
Teu falso, teu miserável, teu sórdido filho
Que estala em força, sacrifício, violência, devotamento
Que podia britar pedra alegremente
Ser negociante cantando
Fazer advocacia com o sorriso exato
Se com isso não perdesse o que por fatalidade de amor
Sabe ser o melhor, o mais doce e o mais eterno da tua puríssima carícia.

domingo, 12 de novembro de 2017

Carlos Marighella: LIBERDADE,

Não ficarei tão só no campo da arte,
e, ânimo firme, sobranceiro e forte,
tudo farei por ti para exaltar-te,
serenamente, alheio à própria sorte.

Para que eu possa um dia contemplar-te
dominadora, em férvido transporte,
direi que és bela e pura em toda parte,
por maior risco em que essa audácia importe.

Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,
que não exista força humana alguma
que esta paixão embriagadora dome.

E que eu por ti, se torturado for,
possa feliz, indiferente à dor,
morrer sorrindo a murmurar teu nome


segunda-feira, 6 de novembro de 2017

tropeço tropicais

Lá fora a chuva cai,
Incessante, redundante
Alaga de incompetência,
Pinga frescor, goteja dor
Molha meus planos

Da porta pra dentro
Atmosfera de clima tenso 
Corações partidos,
 inquisidores assíduos
Tanto quanto covardes retraídos

No tédio me afogo.
Na tela, o fogo.
Na subversão me encontro.
Penso: o que é preciso para
a revolução cantarmos em coro?

O jogo, encontro, a fuga.
Como uma presa indefesa
do predador sedento por carne crua.
Eu desejando sua carne nua.
Nós, a verdade do mundo e a lua.

Devaneios.

Divertimentos ilícitos.
Clássicos no som sempre bem vindos.
A vida, fazendo jus, imprevisível.
O prazer, santo pecador, irresistível. 

diário de volta: relações humanas

19h: Apresentação do trabalho e está tudo muito desorganizado, sei que posso ser uma boa líder pelo conhecimento adquirido e a criatividade prática, mas falta-me tato para com os outros colegas. Deixo que eles façam, pois não confiam em mim, e sempre o resultado é medíocre, deixo que eles sigam desconfiando e se decepcionando. Mas não consigo ter vontade em mudar isso, gosto de ser distante, minha impaciência pode ser agressiva e talvez, por isso, covarde.

20h: À espera de um desencontro, que seria um encontro mas eu já sabia que não ia acontecer. É só observar os pequenos detalhes - havia pensado nisso mais cedo - são tão esclarecedores que chego a comparar como uma mediunidade quase vidente. Na prática é só observar os padrões que se chegará às conclusões. Relacionamentos honestos são raros e é neles que cresço e me entrego. Relacionamentos superficiais ou indigestos só me satisfazem o ego, não nego, mas não quero. Tantos desencontros. Em quem posso confiar? Com quem devo me perder pro que podemos encontrar?

21h30: Estou numa roda de amigos e tenho que ir embora, os cumprimento de longe, nada muito próximo ou afetivo, o que é estranho, acho, mas não me importo apesar de ficar com uma pulga atrás da orelha se eles se ofenderam ou não. Desejo um boa noite apenas, simples e verdadeiro, assim como minha relação com eles, simples e verdadeira, espero que eles entendam e gostem. Eu gosto.

22h10: Subindo a ladeira, um desconhecido vizinho me repreende por nunca ter conversado, pede meu número e sinto um ar superior vindo dele, ignoro. Mais a frente na rua, outro vizinho desconhecido diz que me ama e quer uma chance, esboço uma cara confusa. Me pergunto que tipo de bosta esses caras tem no lugar do cérebro. Me pergunto se devo temer. Será que eles esperam realmente que uma mina se interesse por essa conversinha? Será que tenho que passar a andar com um canivete? Quanto custa um soco inglês?

0h: Agora aqui, percebo a complexidade da coisa toda. A individualidade que criei e influenciada pelo meio em que vivo junto a tantas outras individualidades. Principalmente essa análise que faço de mim mesma e como isso é angustiante - reconhecer minhas disformidades e imperfeição do mundo - e encantador ao passo que me conheço e busco uma melhora e solução. Evolução é o meu conceito-salvação.
- Maria, o que cê tá fazendo?
- O que você acha?
- Merda, como sempre.
- Exato.

domingo, 5 de novembro de 2017

Jorge Salomão:

em mim não habita o deserto que há em ti
minha alma é um oásis luminoso
você constrói sua jaula, e nela quer ficar
cuidado
eu faço o que acho que deve ser feito na hora certa
existe diferença entre paixão e projeção?
será que terei de me tornar um insensível
só pra suprir a demanda do mercado atual?
quanto mais eu me acho mais eu me perco
que os tambores batam
e que tudo se acenda forte!

sábado, 4 de novembro de 2017

Poema de canção sobre a esperança

I

Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar os lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios
E as rosas também,
E terei os lírios —
Os melhores lírios —
E as melhores rosas
Sem receber nada.
A não ser a prenda
Da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.

II

Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amámos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambolhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
(Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem —
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser…
És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio como um elemental inferior,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!

Álvaro de Campos 
17-6-1929

[ou não]

Pode não ser poesia.
Um conto, talvez, poderia.

Pode não ser poesia.
Subjetividade sem disciplina
- disseram-me - não adiantaria.

Pode não ser poesia.
Ao sentir não cabe forma.
Indaguei: quem ousaria?

Pode não ser poesia.
Mas é.

Novos Poetas da Região Cacaueira (1982)

parte I

Venho buscar a justiça
Acender uma tocha
Tirar dos meus versos a certeza
concreta, humana e
sem mentiras
do que resta. 
 
É de sangue e coração
esta denúncia sem sol nem glórias
e tão apaixonada. 
É de incertezas e lágrimas
a estrada desses que falam de amor
e caminham sozinhos. 
É triste e amaldiçoada
a morte dos poetas que caem,
tombados. 
É infinita, secular e certa
a ressurreição dos fortes
numa cerimônia democrática.
[Antônio Júnior - Itabuna]

MOMENTO 
Busquei um lugar de paz
construído na crença do HOMEM,
preservando assim o sonho dos iniciantes
que possuem olhos utópicos.

Falhei!

O HOMEM não persiste na luta,
o lugar de paz não existe,
o sonho foi a única realidade aprendida: é UTOPIA.
E eu permaneço como sempre: só!

INDAGAÇÃO
Por que não me avisaram que os homens partiram?
Por que não me disseram que a partida é exigência primordial do viajar?
Por que não me contaram que os homens morreram?
Por que não me acordaram para ver a barca naufragar?

Por que?
Por que não?

Por que não me amaram?
Por que vieram me dizer que o meu trem de ilusões partiu?
Por que vieram em contar que meu carrossel de lembranças quebrou?
Por que me disseram que minha infância morreu?
Por que me explicaram que minha adolescência cresceu? 
Por que me ensinaram que a saudade é coisa do passado?
Por que me vaiaram quando eu perguntei pelo Amor?
Por que me crucificaram quando eu preguei a Amizade?
Por que me cuspiram quando eu lhe chamei de Amigo?
Por que correram quando eu abri os braços em abraços?
Por que fecharam portar quando eu perguntei por Caridade?
Por que taparam os ouvidos quando eu falei em Solidariedade?

Por que?
Por que gritaram num coro Realidade?

[Ana Virginia Santiago - Ilhéus]




quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Adriano Dias

Cansado,
Aceito
O sim, o não, o assalto, o açoite, o acidente.
Aceito os argumentos estúpidos,
Só falácias, eu sei, mas contundentes.
Aceito o falso moralismo
Em seu escrúpulo tão bem interpretado,
Com nojo, mas sem luta.

Derrotado,
Assumo
As culpas que me imputam,
Mais as que me inventam,
E me deixo levar ao cadafalso
Com a leveza amarela,
Ainda que libertadora,
De quem não achou fresta na malha de ódio
Por onde escapar.

Submetido,
Admito:
Os bichos ternos são trucidados justamente por sua ternura,
Servindo, em seguida, como estandarte para um próximo massacre,
Em seu nome, que ironia.
Em vida, a voz constrangedora do amor é sangue escorrendo em águas de tubarões.
Foi assim com todos os mártires,
E eram tão melhores que eu,
Mereciam tão menos a barbárie que sofreram.
Mas é ao que servem, os doces,
Após mortos são mais úteis.

Abatido,
Além de descansar,
Talvez eu fique maior
E seja útil à manutenção da raiva,
Essa, sim, força motriz do homem.