quinta-feira, 5 de maio de 2022

"Ideologia nenhuma,


antes
 nem
 depois,
 foi
 tão
 convincente
 para quem
 exercia
 a
 hegemonia,
 nem
 tão
 inelutável
 para
 quem
 a
 sofria, escravo
 ou
 vassalo.
 Desapossados
 de
 suas
 terras,
 escravizados
 em seus
 corpos,
 convertidos 
em 
bens 
semoventes 
para 
os 
usos 
que 
o senhor
 lhes 
desse, 
eles
 eram
 também
 despojados
 de
 sua
 alma.
 Isso se
 alcançava
 através
 da
 conversão
 que
 invadia
 e
 avassalava
 sua própria
 consciência,
 fazendo‐os verem‐se 
a
 si
 mesmos
 como
 a pobre 
humanidade
 gentílica
 e
 pecadora 
que, não 
podendo 
salvar se 
neste 
vale
 de
 lágrimas,
 só
 podia
 esperar,
 através
 da
 virtude,
 a compensação
 vicária
 de
 uma
 eternidade
 de
 louvor
 à
 glória
 de
 Deus
no 
Paraíso.




Tal 
é 
a 
força 
dessa 
ideologia
 que
 ainda
 hoje 
ela 
impera, sobranceira.
 Faz 
a 
cabeça
 do
 senhorio
 classista
 convencido
 de
 que orienta
 e
 civiliza
 seus
 serviçais,
forçando‐os 
a 
superar 
sua 
preguiça inata
 para 
viver em
 vidas 
mais
 fecundas
 e
 mais
 lucrativas.
 Faz, também,
 a
 cabeça
 dos
 oprimidos,
 que
 aprendem
 a 
ver 
a
 ordem social
 como
 sagrada
 e 
seu 
papel 
nela
 prescrito
 de
 criaturas 
de 
Deus em
 provação, 
a 
caminho
 da 
vida 
eterna.



Essas 
linhas 
de 
formação correspondem,
 no 
lado 
nórdico {América do Norte},
 à
 formação 
de um 
povo 
livre, 
dono 
do
 seu 
destino, 
que
 engloba
 toda 
a
 cidadania
 branca.
 No
 nosso
 sul {América Latina},
 o
 que
 se
 engendra
 é
 uma
 elite
 de senhores
 da
 terra
 e
 de
 mandantes
 civis
 e
 militares,
 montados
 sobre a
 massa
 de
 uma
 subumanidade
 oprimida,
 a
 que
 não
 se
 reconhece nenhum
 direito.
 A
 evolução 
de 
uma 
e 
outra
 dessas 
formações
 dá lugar, 
nas 
mesmas
 linhas,
 de
 um
 lado,
 ao 
amadurecimento 
de 
uma sociedade 
democrática, 
fundada 
nos
 direitos
 de
 seus
 cidadãos,
 que acaba
 por
 englobar 
também
 os
 negros.
 Do
 lado
 oposto,
 uma feitoria
 latifundiária,
 hostil
 a
 seu
 povo
 condenado
 ao arbítrio, 
à
ignorância 
e 
à 
pobreza.




No
 plano
 histórico‐cultural,
 os
 nórdicos
 realizam
 algumas
 das potencialidades
 da
 civilização
 ocidental,
 como
 extensão sensaborona
 e legítima 
dela. 
Nós,
 ao 
contrário, 
somos
 a
 promessa de 
uma 
nova 
civilização
 remarcada 
por 
singularidades, principalmente
 africanidades.




Já
 por
 isso,
 aparecemos
 a
 olhos
 europeus
 como
 gentes
 bizarras,
 o que,
 somado 
à 
nossa 
tropicalidade
 índia,
 chega
 para 
aqueles
mesmos olhos
 a
 nos
 fazer 
exóticos.




Não 
somos 
e 
ninguém
 nos 
toma 
como
 extensões 
de 
branquitudes, dessas
 que
 se
 acham
 a
 forma
 mais
 normal
 de
 se
 ser
 humano.
 Nós não.
 Temos
 outras
 pautas
 e
 outros
 modos
 tomados
 de
 mais
 gentes. O
 que,
 é
 bom
 lembrar,
 não
 nos
 faz
 mais
 pobres,
 mas
 mais
 ricos
 de humanidades,
 quer dizer,
 mais
 humanos.
 Essa
 nossa
 singularidade bizarra
 esteve
 mil
 vezes
 ameaçada, 
mas 
afortunadamente
 conseguiu 
consolidar‐se.
 Inclusive 
quando
 a 
Europa
 derramou
multidões 
de 
imigrantes 
que 
acolhemos
 e 
até 
o 
grande
 número
 de
 orientais
 adventícios
 que
 aqui
 se
 instalaram.
 Todos
 eles,
 ou
 quase
todos,
 foram
 assimilados
 e 
abrasileirados."

 livro O POVO BRASILEIRO de DARCY RIBEIRO; capítulo 3 O PROCESSO CIVILIZATÓRIO, páginas 72 e 73