segunda-feira, 29 de junho de 2020

Mansidão


As casas dormiam na hora surda do meio-dia.
O corpo do homem penetrou sob árvores
Na longa quietude estendida da rua.
Tudo permaneceu sem um grito,
Um pedido de socorro sequer.
Ninguém soube se o coração vibrou.
Que sonho o acalenta ninguém adivinhou.
Ninguém sabe nada.
Não traz um lamento,
Nem marca dos pés no chão vai ficar.
Tão triste é a vida sem marca dos pés!
Tudo permaneceu sem um grito,
Um pedido de socorro sequer.
Ele passou sem calúnias
E é possível que sem corpos que o chamassem.
Ninguém soube se o coração vibrou
Porque tudo permaneceu sem fundo suspiro
No estranho momento das coisas paradas.

- Manoel de Barros, "Face imóvel"
Meus versos é como semente
Que nasce arriba do chão;
Não tenho estudo nem arte,
A minha rima faz parte
Das obras da criação




- Patativa do Assaré

Mãe

Noite,
Os anos já pintaram de luar os teus cabelos,
No entanto, tudo parece estar acontecendo agora,
Neste instante.

Noite,
Após tantos anos,
Neste momento,
Vejo tudo diante de mim,
Como se estivesse assistindo a um filme
Da infância:

Nós, teus filhos, todos pequenos,
O relógio parado na hora de privações,
Tantos sonhos de asas quebradas pelos cantos
De nossa casa pobre, sem conforto;

Tu, mulher ainda jovem, tão boa, tão calma,
Constelação de esperança e ternura,
Inspirando segurança,
Inspirando fé, amor,
Em meio a tantos vendavais.

Noite,
Tua luta foi para nós teu maior ensinamento
Sofrias (hoje o sei), entretanto,
Em nossa presença, nunca uma lágrima
Rolou pelo teu rosto.

Noite,
Desde criança aprendi a amar-te,
Mas só hoje, adulto, é que vejo, comovido,
As incontáveis estrelas que brilham em teu ser
E que tantos vendavais não conseguiram apagar.
(Quilombo, p. 47-48).


Arco-íris
Para Regina di Franca


Nós somos Dons Quixotes
Em cavalos de sonho vamos
Por toda parte da cidade
Semeando palavras como sementes
Dividindo o pão do bem mostrando caminhos
Levando esperanças a quem não tem

Nós somos Dons Quixotes não importa
De sonhadores o mundo tem precisão
A vida será céu quando todos os homens
Trouxerem as estrelas aqui pro chão

 - Carlos Assumpção -

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Trecho da Entrevista de Robert Penn Warren com Malcolm X - Junho/1964

Eu acho que Nehru provavelmente era um bom homem, apesar de não ser o que eu faria. Eu não gosto de ninguém que seja passivo. Não gosto de ninguém que é... que é... Que defende o pacifismo ou o sofrimento pacífico de qualquer forma. Eu não admiro isso.
(...)
Eu admiro Mao Tsetung muito mais do que Nehru, porque acho que Nehru trouxe ao seu país o papel de mendigo. Esse papel da Índia e sua dependência do Ocidente dura há anos, desde que ela conquistou sua suposta independência, hoje a mantém tão desamparada e dependente como na primeira independência. Enquanto na China, os chineses lutaram por sua independência. Eles se tornaram militantes desde o início, e hoje eles são [independentes]... Mesmo que não sejam amados, eles são respeitados. Embora o Ocidente não os ame, o Ocidente os respeita. Agora, o Ocidente não respeita a Índia, mas ama a Índia.
(...)
Admiro a posição da China e a posição de Mao Tsetung, mas não posso admirar com respeito a posição de Nehru na Índia. Não consigo fazer isso.


quarta-feira, 24 de junho de 2020

Ei, chega de adiar

Já passou da hora de você ir embora
Eu sei que é tentador acreditar no amor
Até quando o afeto já acabou
Mas pense, você não sente falta dele
E sim do que você mesma nutria
Quando acreditava que contigo seria diferente...
A ideia de estar apaixonada é tão poderosa
Que o vazio da separação
Nos traz a ilusão de que estar junto preenche
Não, você já se sentia sozinha faz tempo
Vagando de noite pelo apartamento
Pés descalços no chão gelado
Passos pausados para não chamar atenção
Olhos úmidos, coração na mão
Engolindo a seco pra não fazer barulho
De braços dados com a solidão
Presta atenção, se você está cansada,
Não pára, corra!
O que nos deixa exaustas é não fazer nada
Enquanto nos humilhamos por qualquer coisa!
Você não merece pouco, porra!
Seu corpo já abrigou Oxum, Dandara, Aqualtune e Ciata
Ancestralidade não é corrente, é estrada...
Não mente...
Eu conheço  esse olhar de quem é gigante pra fora
E se apequena dentro da própria casa
Há quanto tempo você não se olha no espelho?
Eu não aguento te ver assim paralisada
Completamente engessada enquanto o fogo da raiva te consome inteira
Sem construir nada!
Eu me recuso a esperar que morra calda
Nunca é tarde pra recomeçar
Não será fácil
Mas ainda assim estará inteira
Ei, chega de adiar
A fantasia alimenta, mas não sustenta
A vida protege quem se arrisca
Existe um sol aí dentro pra acender
Corra!
Não há mais o que dizer
voa!
Tem gente esperando sua coragem pra se mover
Você só precisa de um motivo
Dentre tantos outros, eu te lembro
Que mais importante do que resistir
É ir...
Engatinhando, tropeçando, caindo, levantando,
Cambaleando, em prantos
Só vai...
O caminho se aprende caminhando.

@ Dandara Suburbana


sábado, 20 de junho de 2020

mais uma da série: preciso colocar fontes

1. Introdução
Os indicadores econômicos são índices numéricos de caráter econômico e servem, a priori, para pontuar e caracterizar a situação de determinada empresa, região, estado ou país no período de tempo considerado. A partir de uma análise detalhada desses dados, pode-se averiguar, entre outras coisas, o nível de desenvolvimento de tal economia, bem como suas tendências e assim planejar uma estratégia eficaz e tomar uma decisão assertiva.
A um nível macroeconômico, compara-se os indicadores de diferentes países ou regiões geográficas através do Produto Interno Bruto (PIB), PIB per capita, Saldo da Balança Comercial, Nível Inflacional, Taxa de Desemprego, montante da Dívida Externa, etc. No setor financeiro, ou seja, nas transições entre empresas e bancos, há a Taxa Selic que é uma taxa estipulada para empréstimos entre bancos, a Poupança, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) medindo a variação de preços e seu impacto no consumo das famílias, entre outros. E, levando em consideração o peso dos processos econômicos no meio social, existem outros tipos de indicadores que visam identificar essa interferência na rotina dos indivíduos do local analisado, são alguns deles: o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), taxa de natalidade e mortalidade, os índices financeiros que indicam a disponibilidade do consumidor em realizar compras, etc.
2. Produto Interno Bruto (PIB)
O PIB é principal indicador do potencial da economia de um país e consiste no somatório de toda a riqueza (bens e serviços finais) a valores monetários produzida por este país em um determinado período de tempo, sendo mais recorrente o cálculo anual ou trimestral. Cada país tem sua própria metodologia para o cálculo do PIB, no Brasil, a instituição produtora é o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), órgão governamental responsável pela coleta e emissão de dados socais, econômicos, etc. Técnicos especializados declararam necessária uma adequação aos padrões internacionais, que são orientações propostas pela ONU, pois assim se obtém dados mais próximos da realidade e com muito mais credibilidade. O novo método trabalha com mais fontes de informação e leva em consideração 110 produtos (antes eram 80) e 56 atividades econômicas (antes eram 43) e passou ainda a utilizar como fontes de dados as pesquisas anuais setoriais da Indústria, Comércio e Construção Civil do IBGE e as receitas declaradas das empresas à Receita Federal. A melhora metodológica significa um cálculo mais preciso das riquezas geradas no país.
O objetivo de se calcular é comparar o nível de crescimento econômico com outras localidades e evidenciar possíveis diagnósticos sobre problemas estruturais e financeiros. Além disso, fornece informações sobre os diversos setores primário (matéria-prima e insumos), secundário (máquinas, equipamentos e produtos finais) e terciário (serviços), demonstrando aqueles em que há uma maior ou menor geração de renda para então enunciar eventuais problemas em algumas atividades, demandando ações públicas para corrigir essas dificuldades.
Essa avaliação, no entanto, é limitada, devido a fatores como o tamanho do país e a quantidade de habitantes e por isso nem sempre o país com o maior PIB é mais rico que outro de menor PIB. Para resolver esse problema, existe o PIB per capita, que é o valor total divido pela número da população, para se chegar a proporção da riqueza em relação à sua população. Que apesar de ser mais preciso, ainda é limitado visto que essa média aritmética simples não leva em consideração a distribuição de riqueza, não revelando as relações de desigualdade. Para determinar se um país realmente se desenvolveu com relação ao seu crescimento do produto interno, alguns economistas como Amartya Sen, defendem a análise do PIB juntamente com análise do IDH.
3. PIB e os agentes econômicos
Existem três óticas que podem ser consideradas para a contabilização do PIB: a ótica da Produção, a mais utilizada, que é a soma de todos os serviços e bens finais, subtraindo o valor da matéria-prima e dos insumos, pois assim se evita o problema da dupla contagem, que consiste em considerar o preço de um componente que já estava incluído no produto finalizado. A ótica da Despesa, que é a soma das despesas de todos os agentes econômicos, são eles o consumo das famílias, os gastos governamentais, os investimentos e o saldo da balança do setor externo (subtraindo o valor das importações do valor das exportações). E a ótica da Renda, que é a soma da remuneração aos fatores produtivos, como salários, aluguéis, juros e lucros. Essa relação é uma identidade contábil: escolhendo um dos métodos, se chegará aos mesmos resultados dos outros dois, é usado inclusive como contra-prova.
Dito isto, o primeiro fator que influencia diretamente a variação do PIB é o consumo das famílias, quanto mais as pessoas gastam, mais o PIB cresce, e isso depende dos salários e dos juros. Se o salário é baixo e os juros altos nas prestações, as pessoas tendem a gastar menos, logo, o PIB cai. Os investimentos das empresas também influenciam no PIB. Se as empresas crescem, compram máquinas, expandem atividades, contratam trabalhadores, e assim movimentam a economia, caso haja juros muito altos, os empresários não gastam tanto investindo. Os gastos do governo são outro fator que impulsiona o PIB, ao realizar obras, por exemplo, são contratados empregados trabalhadores, além dos gastos com material e máquinas, o que ele eleva a produção geral da economia. As exportações, se maiores que as importações, também fazem o PIB crescer, pois mais dinheiro entrando no país é gasto em investimentos e consumo.
4. Setores da Economia no Brasil
O desempenho do PIB é decorrente da performance dos três setores que o compõem a economia: Agropecuária, Indústria e Serviços. No dia primeiro de março de 2018, o IBGE divulgou dados referentes ao PIB do ano de 2017, em valores correntes a 6,6 trilhões de reais e 31.587 reais per capita. Após dois anos seguidos (2015 e 2016) de queda, o PIB brasileiro voltou a crescer, representando o fim da recessão econômica no país, com o crescimento de 1,0% em relação ao ano anterior.
Este resultado é devido, pela ótica da oferta, ao excelente desempenho da agropecuária (+13%), a recuperação do setor industrial (0%) e a um setor de serviços que, já contribuiu de maneira positiva para o PIB de 2017 (+0,3%). Pela ótica da demanda, o consumo das famílias (+1%) e a exportação foram os principais componentes que contribuíram para o PIB positivo. A formação bruta de capital fixo, apesar de ainda negativa (-1,9%), destaca-se pela recuperação que apresentou durante o ano já que havia registrado 10,3% de retração em 2016.
Previsões: de acordo com muitos economistas, a economia brasileira vai crescer ainda mais em 2018 do que em 2017, com o controle inflacionário, queda do desemprego e retomada dos investimentos (internos e externos), o PIB brasileiro deverá crescer por volta de 3% neste ano (fonte: FGV - Fundação Getúlio Vargas).

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Slam #3


Analiso

O que vejo no caminho, os truques do discurso político
Tentando comprar as almas desse viveiro apocalíptico
Leis, armas, amarras do opressor contra o oprimido
Vivendo entre cultos, incultos, pastores cada vez mais ricos
Enquanto o rebanho de ovelhas sobrevive raquítico
Alimentado por frases hipócritas e meros paliativos
Direitos não são caridade, deveres incompreendidos
Pudor corrompido
No princípio era o verbo, anterior ao versículo
Versos perversos denunciam a dor de mais um cristo
Primeiro enxergam a cor da pele depois o sangue do indivíduo
Branco sarará, pardo mulato, preto retinto
A mão que afaga, a outra que aperta o gatilho
O dedo que aponta, lágrimas de crocodilo
Esmola mata de vergonha, mas a vergonha vicia.

Admito

Enquanto procuro um ninho, para procriar princípios
E criar um significado, um que a mim faça sentido
Pois o sofrimento também vicia, a morte em si já é um vício
Não desconsidero a razão dos que já partiram
Comove-me a emoção na lógica do auto sacrifício
Perder a vida por um caminho omisso
Ou passagem só de ida para um destino insubmisso
Ecos na minha mente, mistura de sentimentos e ruídos
Entre a aflição e a ambição, florescem desejos doloridos
Meus sonhos ainda vívidos não foram destruídos
Mais que vícios e resquícios, não sou náufrago
Do outro lado do precipício, sou mar, imensidão
Noites sombrias vieram, dias bons e ruins vem e virão
Não me intimido com isso, seguindo ao infinito e além
Eu mulher preta resisto.

Edgar - Antes que as Libélulas Entrem em Extinção

" - Você prefere explodir na bomba relógio que é o sucesso ou simplesmente morrer sem ser incomodado pelo seu nome?"


domingo, 14 de junho de 2020

Vidraça

A moça atrás da vidraça
espia o moço passar.
O moço nem viu a moça,
ele é de outro lugar.

O que a moça ouvir
o moço sabe contar:
ah, se ele a visse agora,
bem que havia de parar.

Atrás da vidraça, a moça
deixa o peito suspirar.
O moço passou, depressa,
ou a vida vai devagar?

= Guimarães Rosa

sábado, 13 de junho de 2020

Maria, espia:

beba mais um pouco,
fume outros tantos...
Esse santo tanto quanto voa
cai no chão

Mesmo sendo tarde,
uma dor demora
uma hora agora é hora
de largar no chão

Maria, espia só:
havia apenas pó
e como pode pó seguir adiante?

[...]

Pé no chão - Mula Manca & a Fabulosa Figura 

Liberdade e o quê mais?

Social democracia, liberalismo social, comunismo libertário... tudo é utopia. Num contexto em que qualquer uma delas poderia ter dado certo, todas deram completamente errado e a minha resposta a isso é porque o ser humano é, em si, imundo. Acho graça quando falam de lutar pela implementação do sistema ideal, mais graça ainda ao saber que cada um tem seu conceito de mundo ideal. Pra mim há claras distinções entre o ideal e o real, um deve sim existir para se opor e complementar ao outro, mas tentar uni-los é pura ilusão. Como meu idealismo sobreviveria na realidade? Eu respondo: não sobreviveu. Parafraseando Pessoa, tenho uma espécie de dever de sonhar sempre, é o que me abraça, me ajuda, me acolhe no mundo das ideias já que no mundo material preciso de fato ser uma guerreira do cotidiano e resistir às incompletudes inquietantes das sociedades e dos indivíduos. Às vezes, mesmo não sabendo e não querendo separá-los, logo percebo a ineficiência de se pensar nisso com um objetivo final de felicidade coletiva, porque os homens são individualistas inatos e se utilizam disso para fins egoístas com tendências à crueldade exacerbada para com os outros seres vivos. Os processos ocorridos no espaço-tempo nos trouxeram até aqui, no entanto, nossas inspirações e aspirações continuam as mesmas, as teorias foram complementadas, a tecnologia proporcionou melhorias físicas, a ciência nos orientou para as possíveis soluções, os erros foram desacreditados, contudo, repetidos e pior, aprimorados. Sofremos das mesmas mazelas, só que em escalas diferentes; em tempos históricos diferentes, a mesma essência de problemas. Insight para a realidade: uma revolução social é ineficaz, não há unidade de ação e pensamento, eu mesma não quero me tornar uno com aqueles em que deposito o meu desprezo. Se vamos tratar de revoluções, estas devem ser por todos os lugares constantes, pois assim é que são as guerras. O ser ou o grupo que melhor se organizar estará na frente, o poder é a organização, a inteligência na face de estratégia. Mesmo que consigamos um estado de bem estar social brando, já que composto por homens, sempre estará sujeito às ambições e corrupções. Mesmo que com boas intenções, posso eu subjugar toda à natureza aos meus anseios? E se assim eu me tornar uma tirana? Se tenho essa dúvida em mim, como posso entregar minha confiança ao outro que é tão demasiadamente humano como eu? É necessário haver oposição permanentemente. Os evoluídos, aqueles em que acreditamos estar acima disso tudo, não podem nos guiar pois já não estão mais aqui. Tento ir buscando esse tipo de evolução também por realmente acreditar que a felicidade geral virá a longo prazo; a longo prazo todos estaremos mortos.

O fim do que nunca se iniciou

Na música, alguém prefere se queimar na cama, em chamas, por um outro alguém qualquer do que ficar só, retida em si. Eu, entretida em lembranças molhadas e destrutivas - submetida a quereres, carinhos e aflições e ainda assim desajustada à companhia -, não ouvi direito e achei que havia me identificado com a letra, voltei a reprodução para cantar em conjunto quando percebi o erro cometido, porque eu sou do tipo contrário. Em contrapartida à ilusão, me contemplo: prefiro estar só do que esta solidão.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Elegia – Indo para o leito

Vem, Dama, vem que eu desafio a paz;
Até que eu lute, em luta o corpo jaz.
Como o inimigo diante do inimigo,
Canso-me de esperar se nunca brigo.
Solta esse cinto sideral que vela,
Céu cintilante, uma área ainda mais bela.
Desata esse corpete constelado,
Feito para deter o olhar ousado.
Entrega-te ao torpor que se derrama
De ti a mim, dizendo: hora da cama.
Tira o espartilho, quero descoberto
O que ele guarda quieto, tão de perto.
O corpo que de tuas saias sai
É um campo em flor quando a sombra se esvai.
Arranca essa grinalda armada e deixa
Que cresça o diadema da madeixa.
Tira os sapatos e entra sem receio
Nesse templo de amor que é o nosso leito.
Os anjos mostram-se num branco véu
Aos homens. Tu, meu anjo, és como o Céu
De Maomé. E se no branco têm contigo
Semelhança os espíritos, distingo:
O que o meu Anjo branco põe não é
O cabelo mas sim a carne em pé.

Deixa que minha mão errante adentre.
Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.
Minha América! Minha terra à vista,
Reino de paz, se um homem só a conquista,
Minha Mina preciosa, meu império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
Liberto-me ficando teu escravo;
Onde cai minha mão, meu selo gravo.

Nudez total! Todo o prazer provém
De um corpo (como a alma sem corpo) sem
Vestes. As jóias que a mulher ostenta
São como as bolas de ouro de Atlanta:
O olho do tolo que uma gema inflama
Ilude-se com ela e perde a dama.
Como encadernação vistosa, feita
Para iletrados a mulher se enfeita;
Mas ela é um livro místico e somente

A alguns (a que tal graça se consente)
É dado lê-la. Eu sou um que sabe;
Como se diante da parteira, abre-
Te: atira, sim, o linho branco fora,
Nem penitência nem decência agora.

Para ensinar-te eu me desnudo antes:
A coberta de um homem te é bastante.

10- Onde, qual almofada sobre o leito,
A areia grávida inchou para apoiar
A inclinada cabeça da violeta,
Nós nos sentamos, olhar contra olhar.

Nossas mãos duramente cimentadas
No firme bálsamo que delas vem,
Nossas vistas trançadas e tecendo
Os olhos em um duplo filamento;

Enxertar mão em mão é até agora
Nossa única forma de atadura
E modelar nos olhos as figuras
A nossa única propagação.

Como entre dois exércitos iguais,
Na incerteza, o Acaso se suspende,
Nossas almas (dos corpos apartadas
Por antecipação) entre ambos pendem.

E enquanto alma com alma negocia,
Estátuas sepulcrais ali quedamos
Todo o dia na mesma posição,
Sem mínima palavra, todo o dia.

Se alguém – pelo amor tão refinado
Que entendesse das almas a linguagem,
E por virtude desse amor tornado
Só pensamento – a elas se chegasse,

Pudera (sem saber que alma falava
Pois ambas eram uma só palavras),
Nova sublimação tomar do instante
E retornar mais puro do que antes.

Nosso Êxtase – dizemos – nos dá nexo
E nos mostra do amor o objectivo,
Vemos agora que não foi o sexo,
Vemos que não soubemos o motivo.

Mas que assim como as almas são misturas
Ignoradas, o amor reamalgama
A misturada alma de quem ama,
Compondo duas numa e uma em duas.

Transplanta a violeta solitária:
A força, a cor, a forma, tudo o que era
Até aqui degenerado e raro
Ora se multiplica e regenera.

Pois quando o amor assim uma na outra
Interanimou duas almas,
A alma melhor que dessas duas brota
A magra solidão derrota,

E nós que somos essa alma jovem,
Nossa composição já conhecemos
Por isto: os átomos de que nascemos
São almas que não mais se movem.

Mas que distância e distracção as nossas!
Aos corpos não convém fazermos guerra:
Não sendo nós, não convém fazermos guerra:
Inteligências, eles as esferas.

Ao contrário, devemos ser-lhes gratas
Por nos (a nós) haverem atraído,
Emprestando-nos forças e sentidos.
Escória, não, mas liga que nos ata.
A influência dos céus em nós atua

Só depois de se ter impresso no ar.
Também é lei de amor que alma não flua
Em alma sem os corpos transpassar.

Como o sangue trabalha para dar
Espíritos, que às almas são conformes,
Pois tais dedos carecem de apertar
Esse invisível nó que nos faz homens,

Assim as almas dos amantes devem
Descer às afeições e às faculdades
Que os sentidos atingem e percebem,
Senão um Príncipe jaz aprisionado.

Aos corpos, finalmente, retornemos,
Descortinando o amor a toda a gente;
Os mistérios do amor, a alma os sente,
Porém o corpo é as páginas que lemos.

Se alguém – amante como nós – tiver
Esse diálogo a um ouvido a ambos,
Que observe ainda e não verá qualquer
Mudança quando aos corpos nos mudamos.

 John Donne ~~

DELÍRIO

Nua, mas para o amor não cabe o pejo
Na minha a sua boca eu comprimia.
E, em frêmitos carnais, ela dizia:
– Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo!

Na inconsciência bruta do meu desejo
Fremente, a minha boca obedecia,
E os seus seios, tão rígidos mordia,
Fazendo-a arrepiar em doce arpejo.

Em suspiros de gozos infinitos
Disse-me ela, ainda quase em grito:
– Mais abaixo, meu bem! – num frenesi.

No seu ventre pousei a minha boca,
– Mais abaixo, meu bem! – disse ela, louca,
Moralistas, perdoai! Obedeci....


Olavo Bilac_______

quinta-feira, 11 de junho de 2020

PAZ

Esta janela aberta
As cadeiras em ordem por volta da mesa
A luz da lâmpada na moringa
Duas meninas que conversam longe…

Paz!
O telefone que descansa
As cortinas azuis que nem balançam

Mas sobre uma cadeira alguém está chorando.
Paz!

- Manoel de Barros


Ver no escuro

Uma vez quiseram me louca, a arder
e eu ardi com uma discrição
de um fogo posto
porque a cura vai na mesma direção
que a nossa febre

Ateei-me como um relâmpago inesperado
à luz do dia
Eu parecia uma basílica em chamas
de altar por estrear, a arder sozinha

Sempre me recusei a arder como os outros

Ardam-se mais à esquerda ou mais à direita
mais ao vento de sul ou de norte
mas labaredem-se, sejam fogos que ardem!

Porque pior que desdita loucura
é toda gente andar em brasa
mas ninguém chegar a incêndio

E no fim são todos cinza.

Cláudia R. Sampaio

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Texto para uma separação

Olhe aqui, olhos de azeviche
Vamos acertar as contas
porque é no dia de hoje
que cê vai embora daqui...
Mas antes, por obséquio:
Quer me devolver o equilíbrio?
Quer me dizer por que cê sumiu?
Quer me devolver o sono meu doril?
Quer se tocar e botar meu marcapasso pra consertar?
Quer me deixar na minha?
Quer tirar a mão de dentro da minha calcinha?
Olhe aqui, olhos de azeviche:
Quer parar de torcer pro meu fim
dentro do meu próprio estádio?
Quer parar de saxdoer no meu próprio rádio?
Vem cá, não vai sair assim...
Antes, quer ter a delicadeza de colar meu espelho?
Assim: agora fica de joelhos
e comece a cuspir todos os meus beijos.
Isso. Agora recolhe!
Engole a farta coreografia destas línguas
Varre com a língua esses anseios
Não haverá mais filho
pulsações e instintos animais.
Hoje eu me suicido ingerindo
sete caixas de anticoncepcionais.
Trata-se de um despejo
Dedetize essa chateação que a gente chamou de desejo.
Pronto: última revista
Leve também essa bobagem
que você chamou
de amor à primeira vista.
Olhos de azeviche, vem cá:
Apague esse gosto de pescoço da minha boca!
E leve esses presentes que você me deu:
essa cara de pau, essa textura de verniz.
Tire também esse sentimento de penetração
esse modo com que você me quis
esses ensaios de idas e voltas
essa esfregação
esse bob wilson erotizado
que a gente chamou de tesão.
Pronto. Olhos de azeviche, pode partir!
Estou calma. Quero ficar sozinha
eu coa minha alma. Agora pode ir.
Gente! Cadê minha alma que estava aqui?

- Elisa Lucinda - 

Sorriso Aberto

É, foi ruim a beça
Mas pensei depressa
Numa solução para a depressão
Fui ao violão

Fiz alguns acordes
Mas pela desordem 
Do meu coração, não foi mole não
Quase que sofri desilusão.

Tristeza foi assim 
se aproveitando pra tentar 
se aproximar...
Ai de mim
Se não fosse o pandeiro, o ganzá 
e o tamborim, pra ajudar a marcar
meu tamborim, pra ajudar a marcar...

Logo eu 
Com meu sorriso aberto
E o paraíso perto
A vida melhorar

Malandro desse tipo
Que balança mas não cai
De qualquer jeito vai
Ficar bem mais legal
Pra nivelar a vida em alto astral 


- Jovelina Pérola Negra - 

Um dia ela foi flor nos jardins

Apesar de me sentir debaixo de uma chuva de remorsos, me mantive teso penhasco, pendúculo sem flor, escondendo, por trás da epiderme transparente, fraturas expostas numa bandeja cirúrgica estendida como uma cuia à existência. A ideia da morte pesava como um território onde predominava o silêncio, e que para alcançá-lo tornava-se necessário se submeter a um trajeto desconhecido, a transformar a vida em algo destituído de ilusões, um camelo de batalha fatalmente perdida. Amanheci ali mesmo, de mãos postas, desolado ante uma garrafa de cerveja, morna, pela metade, um copo vazio e minha gula sobreflutuando algumas rodelas de linguiça. Senti um sufocante gosto de bosta na boca! Meio dia! Como combinado, estava pronto a seguir o plano traçado por Monet. Como um bate-estaca sonâmbulo e serelépido, me recompus para o ritual. Além da marquise, tal qual uma pestana orvalhada, a avenida de mão-tripla gemia aos afagos dos pneus das baratas Metálicas e Gafanhotos Plásticos dirigidos por espécies de antropoparafusos. Doutrolado da avenida, milhões de vidas embrulhadas por prédios sentados, quadrados, disformes, de cujas janelas se precipitavam arregalados piscantes olhares. No seu canteiro central, no espaço reservado às floreiras, vários sacos de lixos rasgados pelos impactos de um vento frio e forte, exibindo, através dos furos semelhantes a feridas insaráveis: latas de suco e doces, sombras de lábios em guardanapos, seringas, pedaços de TV, luminárias inúteis e caixas vazias. Pelas calçadas, Morcegos e Ratos enrolados em gazes passavam como autômatos de carne e ossos. Aos pés dos prédios, doutrolado da avenida, um out-door chama uma daquelas baratas de “novo membro da família”. Por um instante pensei em recolher minha sombra pisada e ignorada pelos transeuntes entre as mesas, onde algumas Lagartixas classe médias falavam de política e concordavam com tudo. Dois garçons compunham um ballet como duas mariposas tontas. Sentia-me ora amarrado a uma cadeira elétrica, ora como um corpo a espera de reconhecimento numa ante-sala de dilaceração. Instintivamente, por um momento, debrucei-me, sem nenhum interesse, sobre um jornal amarrotado, do dia anterior, que Monet deixara sobre a mesa. No piso sujo, ainda viva, a ultima cusparada de Monet, como uma chaga norteando o seu caminho e o meu. Mesmo pensando que tudo caminhava irreversivelmente para a morte, havia uma expectativa de que algo desviasse o rumo dos acontecimentos. Mas, logo aquela mistura de medo e esperança se desfez com aquele entardescer.

- Arnaldo Xavier -

quarta-feira, 3 de junho de 2020

"Será que ainda há quem dê oportunidade pra si e para o outro, e não apenas sangre suas feridas em cima de quem não as provocou?"