sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

É verdade que sinto

É verdade que sinto um imenso desprezo
pelos poetas. Por todos os poetas.
Esses seres ignóbeis que escrevem
a palavra «estrela» e uma estrela, de súbito,
nos queima os dedos distraídos. Uma
vez esteve aqui um poeta. Escreveu
a palavra «labareda». E ainda hoje as manchas
do fogo sujam as paredes e os
mosaicos vidrados da sala de reuniões
do Conselho de Administração.

José Carlos Barros

Contra a corrente

 não existiu

já um

que andava sobre as águas?

Ninguém mais

conseguiu fazer o mesmo


mas 

que tu

uma não-nadadora

nades contra a corrente

não é um milagre menos significativo. 


- Kurt Marti

O leão e o autocontrole

[...] O leão é você mesmo, assim como o cordeiro é você mesmo. Não é preciso ter medo do leão quando ele está sob seu domínio.

— Por Outis 

Uma gota de água

 Uma gota de água
é o suficiente para que um sonhador
- que a tem na sua mão - 
acredite que possui
todo o mar.

Ela é suficiente, 
ele afoga-se.

François Rossel

Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã…
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não…
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico…
Esta espécie de alma…
Só depois de amanhã…
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte…
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos…
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã…
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro…
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã…
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância…
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital…
Mas por um edital de amanhã…
Hoje quero dormir, redigirei amanhã…
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo…
Antes, não…
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã…
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã…
Sim, talvez só depois de amanhã…
O porvir…
Sim, o porvir…

14.4.1928

Durmo, cheio de nada, e amanhã

Durmo, cheio de nada, e amanhã
É, em meu coração,
Qualquer coisa sem ser, pública e vã
Dada a um público vão.
O sono! este mistério entre dois dias
Que traz ao que não dorme
À terra de aqui visões nuas, vazias,
Num outro mundo enorme.
O sono! que cansaço me vem dar
O que não mais me traz
Que uma onda lenta, sempre a ressacar,
Sobre o que a vida faz?!

11.12.1933

– Álvaro de Campos