domingo, 22 de dezembro de 2019

Ser dor mar

Cosmonave de um coração costeiro
que navega na preamar da dor
na maré do amor
no mar do ser
meu alterego
a dor-mar
a domar
os sargaços
de um sal salgado
de um sol solstício
de uma lua lunática
que passa na alma
de enseada

Meu coração aberto
nas praias do sonho
litoral de aberturas
ao mundo

Diego Mendes Sousa

sábado, 21 de dezembro de 2019

Discurso sobre a paz

Já no final de um discurso extremamente importante
o grande homem de Estado engasgando
com uma bela frase oca
escorrega
e desamparado com a boca escancarada
sem fôlego
mostra os dentes
e a cárie dentária dos seus pacíficos raciocínios
deixa exposto o nervo da guerra:
a delicada questão do dinheiro.

Jacques Prévert / trad. de Silviano Santiago

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

RÉPLICA

o governo é racista
a polícia assassina
pra nós, injustiça
e ainda vem com essa
de "não complica"?!

compila meus códigos
me olha nos olhos
desvenda o segredo
em ser feliz no ódio
sem cair no óbvio

notas não me dizem nada
sangram feridas
de existências padronizadas
mentiras deslavadas
de uma tirania maquiada

intercedo
entre o receio e o medo
recheio de ópio
anseio por cura
a vida requer postura

do dia claro, a cor escura

na sombra da bravura
rindo a beça
da anunciada tragédia
egomania inflamada
beirando a loucura

conservar-se entre bestas feras
regenerar-se no desespero
penso em partir em segredo
recuo; espero pela primavera

- Ainda é cedo.



terça-feira, 26 de novembro de 2019

O Pouco Que Sobrou - Los Hermanos

Eu cansei de ser assim
Não posso mais levar
Se tudo é tão ruim
Por onde eu devo ir?

A vida vai seguir
Ninguém vai reparar
Aqui neste lugar
Eu acho que acabou

Mas vou cantar
Pra não cair
Fingindo ser alguém
Que vive assim de bem

Eu não sei por onde foi
Só resta eu me entregar
Cansei de procurar
O pouco que sobrou

Eu tinha algum amor
Eu era bem melhor
Mas tudo deu um nó
E a vida se perdeu

Se existe Deus em agonia
Manda essa cavalaria
Que hoje a fé
Me abandonou

last night

meu órgão de morrer me predomina.
dormi com lágrimas nos olhos
que adiei por cansaço
pela necessidade de dormir.
me esqueci
acordei e
pouco tempo depois
solucei
chorei o rosto inchado
denuncia outro tipo de cansaço
eu só conseguia pensar
em como tudo de ruim
é tudo mais intenso e recorrente
em como tudo de bom
é tudo intermitente
e raro
eu só conseguia pensar
estou cansada de ser triste
estou cansada dessa vida
será qual alguma entidade pode me ouvir
será que tem poder para me levar?
será que não mereço?
será que ainda há algo por falar?
eu só não queria que essa vida fosse
tão triste.
eu só queria que meus problemas
pessoais fossem os únicos problemas.
amantes, desamores, amizades, inimizades
isso tudo é tão insignificante.
eu só não queria essa vida.
eu só não queria ser triste.

Gostaria de oferecer a algum deus:

Ano Comum

"Abraça-me. Quero ouvir o vento que vem da tua pele, e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos. Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida na palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos para provar o sabor que tem a carne incandescente das estrelas. Abraça-me. Veste o meu corpo de ti, para que em ti eu possa buscar o sentido dos sentidos, o sentido da vida. Procura-me com os teus antigos braços de criança, para desamarrar em mim a eternidade, essa soma formidável de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram. Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor. Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos, para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros pequeninos.
Só essa água fará reconhecer o mais profundo, o mais intenso amor do universo, e eu quero que delem fiquem a saber até as estrelas mais antigas e brilhantes.
Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais.
Uma vez que nem sei se tu existes. "

Joaquim Pessoa

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Schopenhauer

"...Tenham mais honra no corpo e menos dinheiro nos bolsos e deixem os ignorantes sentirem sua inferioridade, em vez de fazer cortesias às suas carteiras."

em A arte de escrever

sábado, 16 de novembro de 2019

Se

Se és capaz de manter a tua calma quando
Todo o mundo ao teu redor já a perdeu e te culpa;
De crer em ti quando estão todos duvidando,
E para esses no entanto achar uma desculpa;

Se és capaz de esperar sem te desesperares,
Ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
E não parecer bom demais, nem pretensioso;

Se és capaz de pensar – sem que a isso só te atires,
De sonhar – sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se encontrando a desgraça e o triunfo conseguires
Tratar da mesma forma a esses dois impostores;

Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas
Em armadilhas as verdades que disseste,
E as coisas, por que deste a vida, estraçalhadas,
E refazê-las com o bem pouco que te reste;

Se és capaz de arriscar numa única parada
Tudo quanto ganhaste em toda a tua vida,
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
Resignado, tornar ao ponto de partida;

De forçar coração, nervos, músculos, tudo
A dar seja o que for que neles ainda existe,
E a persistir assim quando, exaustos, contudo
Resta a vontade em ti que ainda ordena: “Persiste!”;

Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes
E, entre reis, não perder a naturalidade,
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
Se a todos podes ser de alguma utilidade,

E se és capaz de dar, segundo por segundo,
Ao minuto fatal todo o valor e brilho,
Tua é a terra com tudo o que existe no mundo
E o que mais – tu serás um homem, ó meu filho!

Rudyard Kipling

Selva de Pedra II

desapossado, não tem mais casa
um tamanduá surgiu na relva
fugindo da destruição da mata
indo em direção a selva de pedra

uma criança empurrando um carro de mão
de seis anos, talvez menos, talvez não
com dois sacos cheios de latinhas, se anima
no corre do cifrão, não existe idade mínima

um bêbado debilitado cambaleando
acompanhado de um cachorro mancando
mendigando afeto, um pouco de atenção
"uma ajuda por necessidade", estendem a mão

muitos famintos, tantos perdidos
achados da paixão neoliberal;
livres nas coberturas, fartura sem censura
quer seguridade social? vai pra cuba!

aqui a guerra é fria e queima
há festa, há corpos mortos pelo chão
a máscara da morte vermelha
vem caminhando na escuridão...

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Satélite

Fim de tarde.
No céu plúmbeo
A Lua baça
Paira
Muito cosmograficamente
Satélite.

Desmetaforizada,
Desmitificada,
Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o golfão de cismas,
O astro dos loucos e dos enamorados.
Mas tão-somente
Satélite.

Ah Lua deste fim de tarde,
Demissionária de atribuições românticas,
Sem show para as disponibilidades sentimentais!

Fatigado de mais-valia,
Gosto de ti assim:
Coisa em si,
- Satélite.

+Manuel Bandeira

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Tudo por acaso - Lenine

Eu sei
tudo por acaso
tudo por atraso
mera distração

Eu sei
por impaciência
por obediência
pura intuição

Qualquer dia
Qualquer hora
Tempo e dimensão
O futuro foi agora
Tudo é invenção
Ninguém vai
saber de nada

E eu sei
pelo sentimento
pelo envolvimento
pelo coração

Eu sei
pela madrugada
pela emboscada
pela contramão

Qualquer dia
Qualquer hora
Tempo e dimensão
O futuro foi agora
Tudo é invenção
Ninguém vai
saber de nada

E eu sei
por qualquer poesia
por qualquer magia
por qualquer razão

E eu sei
tudo por acaso
tudo por atraso
mera diversão
mera diversão

Qualquer dia
Qualquer hora
Tempo e dimensão
O futuro foi agora
Tudo é invenção
Ninguém vai
saber de nada

E eu sei!...

Acerto de contas

quando a geração de meu pai
batia na minha
a minha achava que era normal
que a geração de cima
só podia educar a de baixo
batendo

quando a minha geração batia na de vocês
ainda não sabia que estava errado
mas a geração de vocês já sabia
e cresceu odiando a geração de cima

aí chegou esta hora
em que todas as gerações já sabem de tudo
e é péssimo
ter pertencido à geração do meio

tendo errado quando apanhou da de cima
e errado quando bateu na de baixo

e sabendo que apesar de amaldiçoados
éramos todos inocentes.

Jorge Wanderlei

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

O tão pouco

que acontece como poderia ser mais?
Como achar-te entre tantos se não te procuro?

Estou por entre coisas lembrando
uma palavra, um sentido.
E para ninguém vejo o mesmo caminho
olhando assim pra dentro do que fazem.
Só o que acontece tem nome e é tão pouco.

Tão pouco te vejo tão pouco te procuro
que penso chegar a encontrar-me.

E nessa mágoas, em desejos
te esqueço.

Helder Moura Pereira

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Ah, América!

Éramos filhos de deuses e
tornamo-nos escravos.
Vestíamos com ouro,
lindas pedras e
rica plumagem,
sem fome,
miséria e
doenças.

Nos tornaram um continente
pobre e saqueado.
Éramos conhecimento da natureza e
nos trouxeram ao seu Deus e,
junto com seu Deus,
a ignorância e o desapego
da mãe terra.

Do grande mar,
inexplorado por nós,
surgiram
e fizeram-nos acreditar
serem os enviados dos deuses
e seu conquistador
o Quetzalcóatl que tanto aguardávamos.

Se aproveitaram de nossas crenças e
as utilizaram para nos destruir.

Tínhamos nossa própria língua que,
aos poucos,
foi substituída pela daqueles
que nos dominaram.

Em pouco tempo
nossa cultura e
nossas crenças
existiriam apenas como
a história escrita por eles.

Em 50 anos,
cerca de 70 milhões dos nossos
haviam sido eliminados,
restando apenas 10 milhões

Foi assim que a civilização chegou.

Tiago Dias

sábado, 19 de outubro de 2019

"Agora

saiba que és
energia pulsante
destruidora de apegos
silêncio celestial
pacificador de conflitos
fogo vibrante
consumidor de medos.

Aqui e agora
saiba que és
magnificência infinita
transformadora da vida
aqui e agora
saiba que és
e sempre foste
tudo."

(Valeria Lapel)

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

de fato, raça é só uma: humana.

mas não estamos falando de simples genética, senão do fator social; de como nos relacionamos no meio em que vivemos. mais ou menos melanina não te faz superior a ninguém, mas determina como vc será tratado na sociedade. quanto mais preto, maior a discriminação. quanto mais discriminação, maiores são os problemas sociais, financeiros, psicológicos, estruturais que a pessoa enfrenta. a união do povo preto não é segregação para com os brancos (mesmo que alguns mereçam KKK), é um motim contra essas agressões que só atingem ao povo preto. é uma insubmissão ao racismo. se vc não entende a dimensão dessa revolta, vc não sabe ''a dor e a delícia'' que é ser preto; tudo bem também, o que vc não pode é desmerecer a luta de quem vivencia essas dores diariamente usando falas rasas, arrogantes e sem conhecimento nenhum. movimentos de pretos e pretas unidos é mais que necessário e urgente. não é vitimismo ou querer privilégios, é lutar pela sobrevivência. preto é resistência. preto é lindo.

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Eu escrevo

porque o peso
das minhas ideias
precisa escorrer;

porque as minhas veias
estão cheias
de sentir sozinhas;

porque nas tramas
da vida eu sou
narrador-personagem;

porque as minhas resoluções
não são só minhas,
são universos coletivos;

porque o espaço
que a minha palavra conquista
é representatividade;

porque a dor ensina
e todo conhecimento
precisa ser de todos;

porque há quem leia,
há quem sinta,
há quem precise;

porque a minha obra-prima
é a minha vivência
de poeta-pessoa-escriba;

porque eu sou esponja do mundo,
e é preciso esvaziá-lo
de inundações.

[Guilherme Aniceto]

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Estações internas

Estou contando com a primavera
Ultimamente não tem havido flores
Dentro de mim:
Tenho andado meio chuvoso,
Horizontes nublados, embora tempestuoso
São frios, frios.

Hoje de manhã não abri a janela
Saí de surpresa,
E de surpresa vi o dia:
Estava lindo.
E fiquei com vontade
De mudar minha meteorologia interior.


sexta-feira, 11 de outubro de 2019

haikai

Ladeira suada
Luzes do morro
Levam-me à lua

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

A Flor - Los'Hermanos


- Ouvi dizer
do o teu olhar ao ver a flor,
não sei por que
achou ser de um outro rapaz...
Foi capaz de se entregar...
Eu fiz de tudo pra ganhar você pra mim,
mas mesmo assim...

Minha flor serviu pra que você
achasse alguém
(um outro alguém)
que me tomou o seu amor!!!
E eu fiz de tudo pra você perceber
que era eu...

- Tua flor me deu alguém pra amar...
- E quanto a mim?...
Você assim e eu, por final, sem meu lugar.
- E eu tive tudo sem saber quem era eu.
- Eu que nunca amei a ninguém
pude, então, enfim, amar.

...Vai!

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

quando sente medo de pular, é o exato momento em que precisa pular. senão, você fica estagnado por toda vida. e isso eu não posso fazer.”

— j.c. chandor, o ano mais violento.

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Algum deus a agraciou com a habilidade de olhar adiante e somente adiante. 
(Dogville) 

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Reflexões

Por que você dá tanto poder a alguém?

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

"Você já está engajado, mesmo que pense que não está. Você tem um papel na sociedade e apenas não se deu conta disso. Fique atento ao significado da sua situação."

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Simone de Beavouir fala:

Para nós, a moral não é uma questão de princípios ou valores eternos, mas uma questão concreta de eficácia sempre no sentido de servir ao bem, à felicidade e à liberdade do homem.

O que prevalece no mundo é a necessidade e a impotência do planeta em satisfazer a todos de forma primitiva.

O amor é a renúncia em qualquer posse. - Segundo Sexo
Penso que amar de fato não é querer possuir, mas que amar seja querer criar elos com outro ser que não são de possessão, como de possuir uma roupa ou o que comemos.

[ciúmes] Há os que são um tipo de compensação porque nos sentimos falhar em nossa existência e centramos tudo no amor e no ser amado.

No geral, não creio que exista uma natureza humana. Creio que o homem depende de condições de todo tipo, a começar por fisiológicas, é claro, e também de local, tempo, civilização, técnica, etc.

[sobre a condição feminina] Não é uma revolta, nem protesto. Só gosto de descrever. Penso que é sempre bom tomar consciência das coisas. Dito isto, protestar seria vão porque não cabe ao homem nem à mulher, de momento, transformar a situação como num passe de mágica.

Aí a questão da mulher se liga ao trabalho, mão de obra, desemprego, portanto da necessidade, da escassez, da riqueza, etc. Nem o homem, nem a mulher, nem ninguém em especial é o culpado por essa condição senão o conjunto do mundo como ele é.

Que a mulher tenha filhos, isso é muito importante, mas querer reduzi-la a isso só mesmo o hitlerismo e o fascismo italiano fizeram.  Em geral admite-se que a mulher é um ser humano que pode fazer algo além de ter filhos.

O princípio do casamento é obsceno. Quer dizer, dois seres fixados um ao outro por instituições por elos puramente externos sem nada mais no coração ou na carne que os uma, chega a ser algo tão repugnante quanto à prostituição. [...] As relações devem ser mais de sentimento e liberdade, do que de instituições.

Não fui uma revoltada no dia-a-dia,  mas acabei sentindo grande aversão depois pela mente burguesa. Foi pouco a pouco, por isso acho que foi muito profundo. Começou com algum mal-estar, eu achei que havia incoerência no que as pessoas diziam e o que faziam, que seu modo de vida era pouco inteligente, que não sabiam viver.  Isso com 12 ou 13 anos, pensei que coisas aconteciam sem razão alguma, que poderiam não acontecer. Pouco a pouco, sem revolta, uma espécie de estupidez me saltou aos olhos, da qual eu quis me livrar. Trabalhei pra isso, quando me tornei estudante e criei um plano de vida, tentei me afastar ao máximo desse tipo de esquema pronto.  Eu quis inventar minha vida, eu achava que poderia e que me sairia melhor do que repetindo rotinas consagradas, mas muito mal percebidas.

[deus] Não foi uma crise, foi uma tomada de consciência. [...] Colocar o problema de que existimos na Terra, sem procurar penetrar a cadeia de causas e efeitos. Digamos que percebi que não tinha razões para crer. E que as pessoas que me cercavam acreditavam sem ter razões também. A mim parece um recurso um tanto desesperado. De qualquer forma, quem vai interpretar a vontade de um deus ou como se dá a transcendência aqui no mundo será cada um, em sua consciência. Cada um interpreta deus por suas próprias tendências.


A entrevista intitulada Simone de Beauvoir Falacensurada na década de 60 pelo arcebispo de Montreal, foi concedida em 1959 à Rádio Canadá e ao entrevistador Wilfrid Lemoine.

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

De cara

desce ladeira,
sobe ladeira,
passa pelo beco,
desce escada,
sobe escada,
volta pelo beco
e... nada.
e onde tem: miadaça.
na luta contra a cara,
eu perdi essa batalha.
e agora, quem poderá nos salvar?
me aconselharam a fazer uma loucura pra extravasar...
e eu concordei...
te cuida!

quinta-feira, 25 de julho de 2019

#toda surdez será castigada

chefes de estado sem culpa,
líderes religiosos alucinados,
corporativistas sem remorso.
e o direito à vida dos civis?
nem nasceu.

Ensinamentos

Ser invisível quando não se quer ser
é ser mágico nato.

Não se ensina, não se pratica, mas se aprende.
no primeiro dia de aula aprende-se
que é uma ciência exata.

O invisível exercita o ser “zero à esquerda”
o invisível não exercita a cidadania
as aulas de emprego, casa e comida
são excluídas do currículo da vida.

Ser invisível quando não se quer ser
é ser um fantasma que não assusta ninguém.

Quando se é invisível sem querer
ninguém conta até dez
ninguém tapa ou fecha os olhos
a brincadeira agora é outra
os outros brincam de não nos ver.

Saiba que nos tornamos invisíveis
sem truques, sem mágicas.
Ser invisível é uma ciência exata.

Mas o invisível é visto no mundo financeiro
é visto para apanhar da polícia
é visto na época das eleições
é visto para acertar as contas com o Leão
para pagar prestações e mais prestações.

É tanto zero à esquerda que o invisível
na levada da vida soma-se
a outros tantos zero à esquerda
para assim construir-se humano.

Esmeralda Ribeiro____

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Sou uma cética que crê em tudo,

 uma desiludida cheia de ilusões, uma revoltada que aceita, sorridente, todo o mal da vida. Uma indiferente a transbordar de ternura...

Florbela Espanca

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Citei um provérbio

 que repetia com frequência no ar -"Se não pode fazer alguém feliz, não lhe dê esperanças"- e disse, com franqueza: "Taohong, obrigada. Fico muito feliz em tê-la conhecido, mas não lhe pertenço e não posso ser sua amante. Creia-me, há alguém à sua espera no mundo. Continue lendo e expandindo os horizontes, você a encontrará; não a deixe esperando.

Xinran
trecho do livro As boas mulheres da China

Cântico IV

Tu tens medo de
acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerá por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.

..Cecília Meireles 

Poema Secreto I

Que se distraiam teus pés
em mil passeios.
E tuas mãos despenteiem águas
e tranças de heras.
Mas teus olhos, não
- teus olhos estão
sigilados em meus tesouros.

.Flávia Savary

sábado, 6 de julho de 2019

O desjejum

Gosto quando dizes disparates,
quando fazes asneiras, quando mentes,
quando vais às compras com tua mãe
e chego atrasado ao cinema por tua culpa.
Gosto mais quando é meu aniversário
e me cobres de beijos e bolos,
ou quando estás feliz e dá para notar,
ou quando és genial com uma frase
que resume tudo, ou quando ris
(teu riso é uma ducha no inferno),
ou quando me perdoas um esquecimento.
Mas eu ainda gosto mais, tanto que quase
não posso resistir ao tanto que te gosto,
quando, cheia de vida, despertas
e a primeira coisa que fazes é dizer-me:
“Estou morrendo de fome esta manhã.
Vou começar por ti o desjejum”

Luis Alberto de Cuenca –

Todas as palavras

As que procurei em vão,
principalmente as que estiveram muito perto,
como uma respiração,
e não reconheci,
ou desistiram e
partiram para sempre,
deixando no poema uma espécie de mágoa
como uma marca de água impresente;
as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te
nem foram capazes de dizer-me;
as que calei por serem muito cedo,
e as que calei por serem muito tarde,
e agora, sem tempo, me ardem;
as que troquei por outras (como poderei
esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?);
as que perdi, verbos e
substantivos de que
por um momento foi feito o mundo
e se foram levando o mundo.
E também aquelas que ficaram,
por cansaço, por inércia, por acaso,
e com quem agora, como velhos amantes sem
desejo, desfio memórias,
as minhas últimas palavras.


Manuel António Pina – 

Por delicadeza/Eu perdi minha vida

quando nos juntávamos
o tema era sempre
o mesmo. mas muitas
vezes discutiam-se
outros, e até ideias como
a imortalidade ou
não da alma: e fumar
tornava-se mais
pertinente. as conclusões
ficavam sempre
com cada um, ou então
deixadas em cima da mesa,
à espera que alguém as limpasse.
eram longos e luminosos
os dias, apesar do preto
que predominava
nas nossas roupas
e em alguns poetas
que líamos, de quem
decorávamos sempre
alguns versos. como
por exemplo estes:
«Par délicatesse
j’ai perdu ma vie».

Manuel A. 

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Todos vocês parecem felizes…

… e sorriem, às vezes, quando falam.
E até dizem uns aos outros
palavras de amor. Mas
amam-se
de dois em dois
para
odiar de mil
em mil. E guardam
toneladas de asco
por cada
milímetro de felicidade.
E parecem – nada
mais que parecem – felizes,
e falam
com o fim de ocultar essa amargura
inevitável, e quantas
vezes não o conseguem, como
não posso ocultá-la
por mais tempo: esta
desesperante, estéril, longa,
cega desolação por qualquer coisa
que – não sei para onde – lentamente, me arrasta.

- Angél González

sexta-feira, 21 de junho de 2019

A minha teimosia

A minha teimosia é furiosa:
não abdica do amor pela poesia
e, muito menos, deste amor à vida
cujo sentido é só morte amorosa.

A minha teimosia é já de velho:
mil amores vivi e perdi mil amigos;
e, por atalhos, meus passos perdidos
desviaram-me a alma pra dentro dum espelho.

Não gostei do que vi, perplexo e com desgosto:
demasiadamente humano pro meu gosto.

[António Barahona]

Disposição final:

Nem todas as mulheres querem casar e ter filhos; muitas desejam orgasmos e animais domésticos.
Paulo Coelho

Pitágoras

"A maioria dos homens e mulheres, por nascimento ou natureza, não tem os meios para progredir na riqueza e no poder, mas todos tem a capacidade de progredir no conhecimento."

quarta-feira, 19 de junho de 2019

XLV

O que é o amor?
A necessidade de sair de dentro de si.
O homem é um animal adorador.
Adorar é sacrificar-se e prostituir-se.
Assim, todo o amor é prostituição.

- Charles Baudelaire 

Afã

Exposição excessiva 
de um maquiada rotina;
Me entendia.

A verdadeira essência 
à revelia;
monotonia.

Fora das telas, qual parte sua 
Sua e irradia?

A verdade, angústia, dúvida 
- e tudo aquilo que pode cegar -
é, também, o que brilha.

Proceder pra vencer pra crescer 
prevalecer;
Dor não se evita.

Indignada, 
planto indagações, colho rebeldia

As nações submetidas às corporações
Banqueiros que especulam 
nossos corações

Mas nossas canções não cabem em podres padrões.

Tentando descobrir como me satisfazer 
A f u n d o 
em vivências rasas...

Se não posso desbravar, 
devo ao menos suportá-las 

Mas meu coração em riste, não me permite 
A não ser um pensar triste 
Um pesar mais do que tudo que existe

Sentimento ardente, sigo ardentemente
O horror à minha frente
Faz com que minha sina seja urgente

Desejo insurgente

Estou viva, não sou uma vítima
enquanto a pátria me renuncia
Acha que não dói ser chamada de terrorista?

Por ser quem eu quis ser
Sou; não vou me desfazer

Por estar onde eu estou,
Vou; sem fronteiras a me prender.

(ego em desespero
ou orgulho como oportunidade?)

Com o ar rarefeito e o brilho na retina, sumi na neblina...


terça-feira, 18 de junho de 2019

Ariano Suassuna

“Não sou nem otimista, nem pessimista. Os otimistas são ingênuos, e os pessimistas amargos. Sou um realista esperançoso. Sou um homem da esperança. Sei que é para um futuro muito longínquo. Sonho com o dia em que o sol de Deus vai espalhar justiça pelo mundo todo."


“O que é muito difícil é você vencer a injustiça secular que dilacera o Brasil em dois países distintos: o país dos privilegiados e o país dos despossuídos."

Pra onde eu quero ir?

"Andar na rua vendo o povo em desespero
Brigando pelo melhor lugar, quem chega primeiro
Vivendo um pesadelo acordado, correndo assustado,
Cabreiro com quem está do seu lado

Ver o moleque viciado na televisão
O baixo nível da escola e da educação
A preta linda que não olha no espelho
Tem vergonha do nariz, da boca e do cabelo

O super herói com apenas doze anos
Feliz da vida porque conseguiu um cano
A piveta que já tem um pivete
Q!ue até dá mamadeira ei mano ela se esquece

Ambição alto grau, apocalipse final
Eu não consigo ficar na moral
Famílias inteiras estão caindo na vala
Perdendo a resistência e o pesadelo não pára

Ser Homem de Aço é resistir
Não posso dar as costas se o problema mora aqui
Eu não vou fugir
Nem fingir que não vi
Nem me distrair...

Tenho uma meta a seguir.
Sou fruto daqui.
Se for pra somar,
Ei, mano chega aí!"

[DMN H.Aço]

terça-feira, 11 de junho de 2019

excelentíssima trindade

Em do nome do Ego,
do Ismo,
Propina.
Amém.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

bem vinda ao pesadelo da realidade.

avião cortando o céu 
azul cortado por cabos 
congestionando a vista 
malquista pelo fel 

conectados ao ideal
de imagem, apelo
à ditadura da normalidade
tamanha atrocidade

ignorando o real
individual crueldade
apego ao cifrão e
vivendo futilidade

livres em gaiolas
o meio atola, no jornal
sangue como banal
Neymar passa a bola

hipnotizados com maestria
sem conhecimento, idolatria
desvalia na programação
aliciação

capital manda Estado
tchutchuca obedece,
o príncipe, a política
a arte da mentira

incompreendida
a verdade sólida
com liquidez alta 
torne-se mórbida

hilária, insana
no riso de uma criança
deus sorriu pra mim
já sem esperanças

o livre arbítrio
aprisionado por genocidas
exploradores de pecado
sujeito ao fracasso social

na corrupção, fartura
acima da constituição
armas letais, revoltas frugais
amargura nas ruas

na ruas, a vida crua
cria novos espécimes
animais ilegais
de heróis marginais

ocupar o existir,
resistir o ser
propor um novo seguir
destruir para construir

ainda que fadada ao fim
minha trama, é chama
não será farsa,
inflama

queima ou irradia
ideologia anarquista,
utopia hoje, amanhã
é quem sabe um dia

assim, tão inalcançável
reflito sobre a felicidade
mas não há veracidade,
somente vontade

não me sinto muito bem
à vontade, parece imundo
um mundo tão desigual...
bem vinda ao pesadelo da realidade.

sábado, 18 de maio de 2019

AMOR DE ARIES

espero
te encontrar
numa
revolução
na lua cheia
e os canhões
do paraguaçu
apontados
em nossa
direção

 Barbara Uila__

O país de uma nota só

Não pretendo nada,
nem flores, louvores, triunfos.
nada de nada.
Somente um protesto,
uma brecha no muro,
e fazer ecoar,
com voz surda que seja,
e sem outro valor,
o que se esconde no peito,
no fundo da alma
de milhões de sufocados.
Algo por onde possa filtrar o pensamento,
a ideia que puseram no cárcere.

A passagem subiu,
o leite acabou,
a criança morreu,
a carne sumiu,
o IPM prendeu,
o DOPS torturou,
o deputado cedeu,
a linha dura vetou,
a censura proibiu,
o governo entregou,
o desemprego cresceu,
a carestia aumentou,
o Nordeste encolheu,
o país resvalou.

Tudo dó,
tudo dó,
tudo dó…
E em todo o país
repercute o tom
de uma nota só…
de uma nota só…

– Carlos Marighella

Florescer I

Mais uma vez me encontro
fugindo.
Criei expectativas altas demais
e me cansei na escalada.
Mas não consegui parar pra respirar,
descansar, não.
Simplesmente desisti.

Mais uma vez fugindo.
Não querendo lidar
com as responsabilidades,
consequências
e ilusões perdidas.
Atrasando a decepção
de quem por mim daria a vida.

Mas, afinal, com o quê
devo me preocupar?
Quais as minhas perspectivas?
Por que é tão difícil achar uma solução,
qualquer inspiração?
Delimitar os limites.
A linha tênue entre razão e emoção.

Respiro fundo.
Não sei o que fazer,
o que pensar, como chegar.
A vida merece uma cartilha,
mas quem poderia imaginar?
Só não quero me machucar.
Sinto que posso melhorar.

Sinto que posso crescer
para finalmente ser.
Florescer.



quinta-feira, 16 de maio de 2019

High by the beach

O vento aumentou a velocidade deixando a realidade um pouco mais rápida.

quarta-feira, 15 de maio de 2019

"Imploro por mais visões que fascinam


por mais iminentes sensações que cativam
por mais momentos que levem ao
pensamento: "Magnífica vida!"

Eu vi o profundo de teus olhos...
e sobrevivi."



quarta-feira, 8 de maio de 2019

E ao anoitecer

e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia

Al Berto

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Emma Goldman


A religião, especialmente o cristianismo, condenou a mulher a uma vida enquanto inferior, como escrava. Isso frustrou a sua natureza e acorrentou a sua alma. Apesar disso, o cristianismo não tem maior adepto nem mais devoto que a mulher. De facto, é seguro dizer que já há muito que a religião teria deixado de ser um fator importante na vida das pessoas, não fosse o apoio que recebe por parte das mulheres. Os mais ardentes voluntários das igrejas, os missionários mais inesgotáveis, são mulheres, que se sacrificam permanentemente no altar dos deuses que lhes acorrentaram o espírito e escravizaram o corpo.

Convite Triste

Meu amigo, vamos sofrer,
vamos beber, vamos ler jornal,
vamos dizer que a vida é ruim,
meu amigo, vamos sofrer.

Vamos fazer um poema
ou qualquer outra besteira.
Fitar por exemplo uma estrela
por muito tempo, muito tempo
e dar um suspiro fundo
ou qualquer outra besteira.

Vamos beber uísque, vamos
beber cerveja preta e barata,
beber, gritar e morrer,
ou, quem sabe? beber apenas.

Vamos xingar a mulher,
que está envenenando a vida
com seus olhos e suas mãos
e o corpo que tem dois seios
e tem um embigo também.
Meu amigo, vamos xingar
o corpo e tudo que é dele
e que nunca será alma.

Meu amigo, vamos cantar,
vamos chorar de mansinho
e ouvir muita vitrola,
depois embriagados vamos
beber mais outros sequestros
(o olhar obsceno e a mão idiota)
depois vomitar e cair
e dormir.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Entre olhares.

 Dondocas passeiam com seus mini cachorros humanizados, expressam medo com nossa presença de preto do "gueto" e correm pra seus porteiros, pretos credenciados, que nos olham desconfiados. E assim nós, pretos afrocentrados, caminhamos sempre com receio de que essa gente "nobre" nos ponha em alguma crueldade com aquela gente que gosta de bater em pobre e ameaçar nossa liberdade. Só mais um rolê rotineiro pela cidade.

#pequenos poemas em prosa

sexta-feira, 26 de abril de 2019

Caranguejola

[...]

Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras…
Nada a fazer, minha rica. o menino dorme. Tudo o mais acabou.

[Mário de Sá-Carneiro]

terça-feira, 2 de abril de 2019

Protelada

Consulta marcada após conseguir uma vaga em muitas semanas. Médica atrasada, era pra estar aqui ao meio-dia; são uma e vinte e até agora nada. Enquanto isso, do lado fora, esperando no calor, sentada na calçada, vejo um homem de muita idade revirando lixo, atrás de comida e alumínio em lata. Separa sacola por sacola, retira o que lhe convém, sem deixar a lixeira bagunçada. Tanto cuidado e apreço, imagino como foi sua vida sofrida, como está sendo essa falsa alforria de uma existência roubada. E como se não bastasse, ele canta feliz alguma canção que não consigo ouvir, alegria inexata. Deseja boa tarde a todos os enfermos da clínica, uma fala cínica de uma vida indigna, e se vai, some pela estrada. E o que eu vim fazer aqui? Ah sim, uma consulta médica, lida ingrata. Perguntei a secretária, disse que da gastro doutora esperava alguma desculpa por estar demorada, ou a resposta se ainda iria chegar, porque até agora nada.


finais felizes que não tive #2

domingo, 24 de março de 2019

tenho o desejo intrínseco

que vem de influências externas.

um devanear cínico
via contemplações terrenas

no meu despertar íntimo
uma angústia serena

por um olhar clínico
nos vejo atolados em mazelas

em estado crítico
alienados em telas e celas

então um sentimento impreciso
é me deixado como sequela

me submeter ao dever cívico
de sonhar a vida mais bela.

“Ban abatele; bana batelelwa”

“Onde há quem diz, deve se permitir que haja aquele que contradiz”, um dos princípios da democracia em Mbanza-kôngo, Angola; séc XVI e XVII.

(via: Por dentro da África)

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Mais uma de amores líquidos...

eu penso em você com todo apreço;
sinto um poema, leio uma música, te ofereço.
o não haver reciprocidade é o preço
pago.
apago mensagens
afago, sozinha, meu peito.
eu quero te incluir em tudo
sem medo,
fazer viagens, passeios, bobagens
mas para cada ideia, uma desculpa.
e ainda me faz sentir culpa.
sinto culpa e tédio.
você faz planos e não me diz
sua pouca ternura é o que condiz
com o meu exagerado apego.
paro e observo;
é o que eu mereço?
em bando, sou como um qualquer elemento
quando só, sirvo como objeto direto
do seu predicado carente de sujeito.
que tipo de consideração é essa?
uma hora banquete de festa,
outra hora refeição indigesta.
eis o meu apelo:
ó, coração, razão, sentimento
por que amar pra mim sempre é sofrimento?

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

in verdades

O certo me parece inalcançável
Tanto pelas altas expectativas,
Como pelas baixas estimas
De cada ser humano.

A verdade é adaptada
às circunstâncias, cada instância
Se mantém a distância
De sua essência inata.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Amei-te sem saberes

No avesso das palavras
na contrária face
da minha solidão
eu te amei
e acariciei
o teu imperceptível crescer
como carne da lua
nos nocturnos lábios entreabertos

E amei-te sem saberes
amei-te sem o saber
amando de te procurar
amando de te inventar

No contorno do fogo
desenhei o teu rosto
e para te reconhecer
mudei de corpo
troquei de noites
juntei crepúsculo e alvorada

Para me acostumar
à tua intermitente ausência
ensinei às timbilas

a espera do silêncio

– Mia Couto

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

quando se é jovem de periferia é comum

as sugestões pra vender,
guardar e transportar droga
chegam mais rápido

que ofertas de emprego,
estudo e capacitação
se é que essas chegam

independente da sua reação

de aceitar o caminho dito fácil
e virar mais um robozinho
do crime organizado

ou de renegar o óbvio destino
e construir outro significado
mesmo com duros obstáculos

esse momento é crucial na sua vida

te faz refletir
analisar o ser, o viver,
afinal, o que é preciso ter?

respeito comprado com dinheiro,
sossego produzido com trabalho,
e o medo?

#introdução à filosofia marginalizada 


sábado, 2 de fevereiro de 2019

A criança que ri na rua,

A música que vem no acaso,  
A tela absurda, a estátua nua,
A bondade que não tem prazo —
Tudo  isso excede este rigor
Que o raciocínio dá a tudo,  
E tem qualquer cousa de amor,  
Ainda que o amor seja mudo.

- Fernando Pessoa

domingo, 27 de janeiro de 2019

alegria do abandono

certas coisas prefiro
não enxergar

fingi não vi
fingi não sentir
fingi acreditar

fingir ser o melhor
pra mim
e esperar...

algo que não seja mentira
algo que não cause intriga
algo pra me libertar...

a forma como me tratas
tão rude
que não pude acatar

mais uma vez, mais uma farsa
me ilude
em virtude do amar

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Às vezes tenho ideias, felizes,

Ideias subitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despegam...
Depois de escrever, leio...
Por que escrevi isso?
Onde fui buscar isso?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?...
_Álvaro de Campos

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Murmúrio

Traze-me um pouco das sombras serenas
Que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
- vê que nem te peço alegria.

Traze-me um pouco da alvura dos luares
Que a noite sustenta no teu coração!
A alvura, apenas, dos ares:
- vê que nem te peço ilusão.

Traze-me um pouco da tua lembrança
Aroma perdido, saudade da flor!
Vê que nem te digo - esperança!
Vê que nem sequer sonho - amor!

Cecília Meirelles

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Porque os outros se mascaram mas tu não

Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

= Sophia de Mello Breyner