domingo, 27 de dezembro de 2020

A solidão em nada me assusta...

o que me assusta
-  é a aglomeração humana
tentando preencher 
seus corações vazios,
sem vida,
- com falsas companhias....

(Nietzsche)

domingo, 20 de dezembro de 2020

O Instante Antes do Beijo

Não quero o primeiro beijo:
basta-me
O instante antes do beijo.
Quero-me
corpo ante o abismo,
terra no rasgão do sismo.
O lábio ardendo
entre tremor e temor,
o escurecer da luz
no desaguar dos corpos:
o amor
não tem depois.
Quero o vulcão
que na terra não toca:
o beijo antes de ser boca.

— Mia Couto

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Sentimento do mundo

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.

Mãos Dadas
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Ausência
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

O DEUS DE CADA HOMEM
Quando digo "meu deus"
afirmo propriedade
Há mil deuses pessoais
em nichos da cidade.

Quando digo "meu deus",
crio cumplicidade.
Mais fraco, sou mais forte
do que a desirmandadade.

Quando digo "meu deus",
grito minha orfandade,
o rei que me ofereço
rouba-me a liberdade.

Quando digo "meu deus",
choro minha ansiedade.
Não sei que fazer dele
na microeternidade.

Drummond

domingo, 6 de dezembro de 2020

me reconheço e me aprimoro
a fim de evitar o sofrimento
a mim e ao próximo. 

Emergência da poesia

 por Amílcar Cabral


Que fazer?!…
Eu não compreendo o Amor,
eu não compreendo a Vida
Mistérios insondáveis,
Formidáveis,
Mistérios que o Homem enfrenta
Mistérios de um mistério
Que é a alma humana …

Eu não compreendo a Vida:
Há luta entre os humanos,
Há guerra,
Há fome, e há injustiça imensa:
H á pobres seculares,
Aspirações que morrem …
Enquanto os fortes gastam
Em gastos não precisos
Aquilo que outros querem …

Eu não compreendo o amor:
Amamos quem sabemos impossível
Sentir por nós aquilo
Que tanto cobiçamos …

A Vida não me entende,
Eu não compreendo a Vida.
Quero entender o Amor,

E o amor não me compreende!


Poema
Quem é que não se lembra
Daquele grito que parecia trovão?!
– É que ontem
Soltei meu grito de revolta.
Meu grito de revolta ecoou pelos vales mais longínquos da Terra,
Atravessou os mares e os oceanos,
Transpôs os Himalaias de todo o Mundo,
Não respeitou fronteiras
E fez vibrar meu peito…

Meu grito de revolta fez vibrar os peitos de todos os Homens,
Confraternizou todos os Homens
E transformou a Vida…

… Ah! O meu grito de revolta que percorreu o Mundo,
Que não transpôs o Mundo,
O Mundo que sou eu!

Ah! O meu grito de revolta que feneceu lá longe,
Muito longe,
Na minha garganta!

Na garganta de todos os Homens.


Sim quero-te…
Quero-te quando solitário cismo
na nossa vida,
nossa triste vida …
e optimista, esperançoso eu vejo
o meu futuro,
o teu futuro,
e uma vida melhor …

Quero-te quando a nossa melodia,
a nossa morna,
cantas docemente …
… e eu sonho, eu vivo, e eu subo a escada mágica
da tua voz serena,
e eu vou viver contigo!

Quero-te quando contemplo o nosso mundo,
um mundo de misérias,
de dor,
e de ilusões …
… e penso, e creio e tenho
a máxima Certeza
de que o romper da aurora
do “dia para todos”
não tarda … e vem já perto …

… E o mundo de misérias
será um mundo de Homens …

Eu quero-te! Eu quero-te!
Como o dia de amanhã! …


Regresso
Mamãe Velha, venha ouvir comigo
o bater da chuva lá no seu portão.
É um bater de amigo
que vibra dentro do meu coração.

A chuva amiga, Mamãe Velha, a chuva,
que há tanto tempo não batia assim…
Ouvi dizer que a Cidade-Velha,
— a ilha toda —
Em poucos dias já virou jardim…
Dizem que o campo se cobriu de verde,
da cor mais bela, porque é a cor da esp´rança.
Que a terra, agora, é mesmo Cabo Verde.
— É a tempestade que virou bonança…

Venha comigo, Mamãe Velha, venha,
recobre a força e chegue-se ao portão.
A chuva amiga já falou mantenha
e bate dentro do meu coração!


(Poemas da juventude)
Eu lembro-me ainda dos tempos antigos,
Dos tempos sem nome, só teus e só teus …
Em que eras um homem de poucos amigos,
Metido contigo, contigo e com Deus …

Outro homem és hoje – e outro serás,
Bem forte na luta, em prol dos Humanos.
Na luta da vida – eu sei – vencerás,
Num Mundo de todos, sem Mal e sem danos.


No fundo de mim mesmo…
No fundo de mim mesmo
eu sinto qualquer coisa que fere minha carne,
que me dilacera e tortura …

… qualquer coisa estranha (talvez seja ilusão),
qualquer coisa estranha que eu tenho não sei onde
que faz sangrar meu corpo,
que faz sangrar também
a Humanidade inteira!

Sangue.

Sangue escaldante pingando gota a gota
no íntimo de mim mesmo,
na taça inesgotável das minhas esperanças!
Luta tremenda, esta luta do Homem:
E beberei de novo – sempre, sempre, sempre –
este sangue não sangue, que escorre do meu corpo,

este sangue invisível – que é talvez a Vida!


Naus sem rumo
Dispersas,
emersas,
sozinhas sôbre o Oceano …
Sequiosas,
rochosas,
pedaços do Africano,
do negro continente,
as enjeitadas filhas,
nossas ilhas,
navegam tristemente …

Qual naus da antiguidade,
qual naus
do velho Portugal,
aquelas que as entradas
do imenso mar abriram …
As naus
que as nossas descobriram.

Ao vento, à tempestade,
navegam
de Cabo Verde as ilhas,
as filhas
do ingente
e negro continente …

São dez as caravelas
em busca do Infinito …
São dez as caravelas,
sem velas,
em busca do Infinito …
A tempestade e ao vento,
caminham …
navegam mansamente
as ilhas,
as filhas
do negro continente …

– Onde ides naus da Fome,
da Morna,
do Sonho,
e da Desgraça? …

– Onde ides? …

Sem rumo e sem ter fito,
Sozinhas,
dispersas,
emersas,
nós vamos,
sonhando,
sofrendo,
em busca do Infinito! …


A minha poesia sou eu
… Não, Poesia:
Não te escondas nas grutas de meu ser,
não fujas à Vida.
Quebra as grades invisíveis da minha prisão,
abre de par em par as portas do meu ser
— sai…
Sai para a luta (a vida é luta)
os homens lá fora chamam por ti,
e tu, Poesia és também um Homem.
Ama as Poesias de todo o Mundo,
— ama os Homens
Solta teus poemas para todas as raças,
para todas as coisas.
Confunde-te comigo…
Vai, Poesia:
Toma os meus braços para abraçares o Mundo,
dá-me os teus braços para que abrace a Vida.
A minha Poesia sou eu.
– Amílcar Cabral, em “revista Seara Nova”. 1946.


Eu sou tudo e sou nada…
Eu sou tudo e sou nada,
Mas busco-me incessantemente,
– Não me encontro!

Oh farrapos de nuvens, passarões não alados,
levai-me convosco!
Já não quero esta vida,
quero ir nos espaços
para onde não sei.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

No Templo do Cimo

a noite passar no Templo do Cimo
mas baixar a voz não fazer ruído
temer perturbar os seres celestes
elevar a mão carícia de estrelas


Li Bai

"A diminuição da miséria mental dos desenvolvidos

permitiria rapidamente, em nossa era científica, resolver
o problema da miséria material dos subdesenvolvidos.
Mas é justamente desse subdesenvolvimento
mental que não conseguimos sair, é dele que não
temos consciência".


Edgar Morin

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

As mortes

 Aos dezesseis anos

um dos meus melhores amigos do colégio

deu um tiro na cabeça

por causa de uma decepção amorosa.


Aos trinta e nove

o meu professor de literatura mais admirado

morreu de hipotermia num rio,

para salvar seu cão que estava a  afogar-se

sob uma enganadora capa de gelo.


Aos quarenta e quatro

um poeta norte-americano que acabava

de conhecer desapareceu pra sempre

numa remota ilha ao sul do Japão

para ver de perto a boca de um vulcão.


Muitos dirão com sangue frio

que a impaciência do primeiro,

a extrema confiança do segundo

ou a ação imprudente do terceiro,

foram a causa determinante

como se sua explicação pudesse alterar

os resultados.


Ao longo da vida

vamos acumulando mortes

e começamos a pensar sem querer

em qual delas será a nossa,

se será por amor, Sergio, por lealdade,

Eduardo, ou por valentia,

Craig.


-Ramón Cote

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

aquelas 3 perguntas para não esquecer de me amar mais.

Eu mereço isso?

Eu preciso disso?

É justo comigo?

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Descompasso

Hoje sonhei que te encontraria por acaso. / Seduzido, me daria um abraço. / E eu aconchegada, me demoraria em seus braços. / Esse laço me traria felicidade. / Em pouco tempo uma angústia me invade. / Lembro da ausência e da saudade. / Numa sucessão de ternura sonho e crueldade. 

um céu auto-estereograma

"[...] Pergunto-me se adorando esses olhos
Saberei tirar de sua frieza implacável 
Prazeres mais intensos do que os densos ferro e gelo."

- trecho Charles Baudelaire 

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Organizações de-cima-para-baixo

[e] organizações de liderança são relações baseadas em alguns terem cérebro e a maioria não ter cérebro, e, por consequência, PRECISAM daqueles com cérebros. Eu rejeito isso. Eu me amo e amo o Povo e, por conta disso, todos nós temos cérebros e juntos somos mais espertos do que qualquer pequeno grupo de filhos da puta que afirmam ser meus/nossos líderes.


- Ashanti Alston

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

De amor tenho vivido

As coisas que procuro
Não tem nome.
A minha fala de amor
Não tem segredo.

Perguntam-me se quero
A vida ou a morte.
E me perguntam sempre
Coisas duras.

Tive casa e jardim.
E rosas no canteiro.
E nunca perguntei
Ao jardineiro
O porquê do jasmim.
- Sua brancura, seu cheiro.

Queiram-me assim.
Tenho sorrisos apenas.
E o mais certo é sorrir
Quando se tem amor
Dentro do peito.

Hilda Hilst

sábado, 12 de setembro de 2020

utopia

não acontecerá
além daqui
fora de mim

mas a negação não impede
a beleza da imaginação
de me confortar.

o mundo não ocorre aos planos
escorro aos prantos
no fim, que valor terá?

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Sozinho no Japão na véspera de Natal


Não querendo perder tudo para a poesia.
Querendo viver vivendo. Por todo este ano
olhando para o cemitério abaixo do meu apartamento.
Docemente me controlando neste corpo arruinado.
Imaginando se a calma que eu sinto é a felicidade
da qual as pessoas inteligentes falam, ou a mudança
que é aceitação do começo da morte.


Um ano depois
Para Linda Gregg

Dessa distância eles são insignificantes
parados junto ao mar. Ela, de vestido branco
chora, e o casamento está quase acabado,
depois de oito anos. Em volta está o
lado plano e inabitado da ilha. A água
está azul no ar da manhã. Eles não sabiam que
isso ia acontecer quando vieram, apenas os
dois e o silêncio. Uma pureza que se parecia
com a beleza e que era difícil demais para as pessoas.


Chuva

De repente este revés.
Esta chuva.
Os azuis virando cinza
e amarelo
um terrível âmbar.
Nas ruas geladas
o seu corpo quente.
Em um aposento qualquer
o seu corpo quente.
No meio de todas as pessoas
a sua ausência.
As pessoas que são, sempre
sem ser você.

Eu tenho me dado bem com as árvores
por muito tempo.
Muito próximo às montanhas.
A felicidade tem sido um hábito.
E agora
de repente
esta chuva.


Alba

Depois de um verão com pessoas felizes,
eu corro de volta, apavorado, pondo
goela abaixo a dor onde quer que a encontre.

 Jack Gilbert

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

feita de instantes

a paixão que outrora fora avassaladora
a mágoa presa na garganta do que se foi
a saudade antiga do que ainda não se viveu

o silêncio agudo que me atravessou o peito
o grito mudo do que ficou por dizer
o pensamento ínfimo que me acalmou

o novo sentimento sob velhas auroras
o clima ameno depois que o sol se pôs
o horizonte em raios de luz que resiste ao breu

a culpa honrosa que julga defeitos
a fala misericordiosa que veio acolher
o beck aceso na roda que me iluminou

a ideia mirabolante que surgiu
uma nova ideia que me fez esquecer
da dor, da anterior, da flor

o delírio em que eu estava entretida
o devaneio que me fizera perder o ponto
o ponto em que eu ia descer do ônibus

passou.

3 500 km/h

imagino uma paisagem qualquer
- dizem que - bela, mas sobretudo, calma
há árvores que brilham sob a luz do sol
há uma brisa que fazem suas folhas dançarem
ao som do vento escuto amenidades
gostaria de viver isenta pela eternidade
o céu azul claro com poucas nuvens
o dia claro e apesar disso faz frio,
gosto de dias assim, me sinto bem

e sinto um vazio...

de repente, como uma bala perdida
imagens atravessam minha mente
autoridades máximas do meu país
brancos bebem seus copos de leite
pretos sucumbem em seus corpos inertes
como alvos ou massa de manobra no front
guerras repetidas, palavras pertinentes
histórias cruéis de sofrimentos vãos
pelo bem maior do ego, podres poderes

e eu com isso?

é que não consigo ser omissa
é que não me misturo com covardes
que de longe acenam e fingem não ver,
que de perto encenam seu ouro de tolo
tento não me envolver, mas sempre me sujo
sangro o mesmo sangue, me dói a mesma dor
sei que não é fácil, me inspira à coragem
eis a verdade que é minha e a protejo.
e assim mudo rapidamente de desejo,

insubmisso.

POEMA QUE ACONTECEU

Nenhum desejo neste domingo
nenhum problema nesta vida
o mundo parou de repente
os homens ficaram calados
domingo sem fim nem começo.

A mão que escreve este poema
não sabe o que está escrevendo
mas é possível que se soubesse
nem ligasse.



POR MUITO TEMPO ACHEI QUE A AUSÊNCIA É FALTA

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.



MEMÓRIA

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.



POEMA

É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha
É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.



O SEU SANTO NOME

Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda a razão ( e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.



TAMBÉM JÁ FUI BRASILEIRO

Eu também já fui brasileiro
moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas há uma hora em que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam.

Eu também já fui poeta.
Bastava olhar para mulher,
pensava logo nas estrelas
e outros substantivos celestes.
Mas eram tantas, o céu tamanho,
minha poesia perturbou-se.

Eu também já tive meu ritmo.
Fazia isso, dizia aquilo.
E meus amigos me queriam,
meus inimigos me odiavam.
Eu irônico deslizava
satisfeito de ter meu ritmo.
Mas acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irônico mais não,
não tenho ritmo mais não.



SEGREDO

A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.

Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.

Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.

Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça.



ALÉM DA TERRA, ALÉM DO CÉU

Além da terra, além do céu
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastros dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos conjugar
o verbo fundamental essencial
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar
o verbo pluriamar,
razão de ser e viver.

++ Carlos Drummond de Andrade

expressionista invendável

me disseram artista,
poeta revoltada,
incomodada às injustiças.
para a desordem relativística,
ofereço insubordinação lírica.

mas de conceitos sempre fugi,
pois sendo grande, não vou
apequenar para me definir
e sendo insuficiente,
não me cabe persuadir.

inerente ao meu ser
- que vê e ainda não crê -
sobem à superfície espectros
do que sou e do que quero.
me ponho a escrever

nobres sentimentos
em pobres métricas.
desinteressada em vender ética
para suprir demandas estéticas,
sigo estéril e indigesta.

arte como expressão:
não há mercado
nem público-alvo,
fragmentos de sucesso
ou fracasso são todos vãos.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Tamanduaí

Guardo minhas descobertas para mim
Não as grandes, que podem vir a ser úteis em grande escala
Mas as pequenas, de toque singelo
Um poema erótico ou um animal exótico
Os outros parecem não dar a mesma importância
Eu não daria, não sentiria
Mesmo ao meu lado, a distância compreende quilômetros
Cada um, uma forma de sentir, de pensar, de usufruir
Do momento que mesmo repetitivo há algo q o torna único
E talvez eu não precise de fato compartilhá-lo
Contemplar a descoberta, entre o espanto e o encanto
No meu canto
Não devo me expor de modo a tal
Me prender a uma situação chata por seu caráter de insistência
Insistência gera desgaste
Com desgaste há o embate
Sem compreensão
Falsa absorção
Prefiro só me acarinhar só
Gozar da minha companhia
Agonia, carícias, pranto
Eis a solidão em canto.

"Não se pode falar de democracia onde a cada 23 min um jovem negro é morto, onde não estão incluídas as mulheres negras, lésbicas, pobres. A democracia do futuro não pode ser a democracia de satisfação do mercado. A acumulação capitalista necessita que compremos e gastemos, vendem mentiras até que te tiram o último dinheiro. Essa é a nossa cultura e a única saída é a contracultura. Sem mudar a cultura, não muda nada; e como cultura entende-se mentalidade de vida. É preciso abandonar o consumismo e passar a ter como centro da sociedade, a vida e a felicidade humana."

- Pepe Mujica para Jornalistas Livres 

Anarquia e Ordem não são inimigas.

[...]Anarquia é um estado de sociedade governada pela razão, pela ordem voluntária e pela educação. Em Anarquia todos os seres humanos tem direito á vida e ao usufruto das riquezas naturais e advindas do trabalho livremente associado. É uma comunidade humana baseada fundamentalmente na liberdade que permite aos indivíduos desenvolver todas as suas potencialidades criadoras, artísticas e o sentido da solidariedade com o "mágico poder" de ligar os homens emocionalmente pelo coração e pelo cérebro.
O anarquista é, portanto, uma pessoa adepta da Anarquia. Um cidadão contrário à desigualdade existente nas sociedades mercantilistas, bélicas, imperialistas, exploradoras que alienam e subjugam as pessoas em prejuízo da felicidade, da vida!
Para os anarquistas a coisa mais importante a preservar e desenvolver é o ser humano; por isso advoga a liberdade integral (física, psíquica, religiosa, política, econômica, etc) como meio de permitir a cada indivíduo a possibilidade de despertar e desenvolver todas as suas capacidades e aptidões, sem temores, cerceamentos e/ou frustrações.

- A doutrina anarquista ao alcance de todos - José Oiticica - 

terça-feira, 28 de julho de 2020

>> arte como expressão
não há mercado nem público-alvo
fragmentos de fracasso ou sucesso são todos vãos

>> paixão intensa, puro desapego
a angústia da esperança no caos
"este fogo que só com fogo se pode apagar"

CARTA AO POETA EUGÉNIO EVTUSHENKO A PROPÓSITO DE UMA SUPOSTA AUTOCRÍTICA


Não te arrependas de nada.
Um verso está sempre certo
mesmo quando está errado. A verdade
também, mesmo quando dói

ou fere ou parece inoportuna.
A verdade nunca é inoportuna.
O teu inconformismo é o preço
da nossa libertação e os teus versos

florescem no coração do povo.
Não. Não te arrependas de nada.
Não forces o verso, não obrigues
a palavra: um poeta está

sempre certo. Não permitas que o óxido
dos políticos entre na lâmina
dos teus versos. Um poeta não se vende,
não se compra, não se emenda.

A um poeta corta-se-lhe
a cabeça. E uma cabeça
cortada não dói, mas tem
uma importância danada.

RUI KNOPFLI, Uso Particular, ed. Do Lado Esquerdo

sábado, 18 de julho de 2020

O Poeta da Roça

Sou fio das mata, cantô da mão grosa
Trabaio na roça, de inverno e de estio
A minha chupana é tapada de barro
Só fumo cigarro de paia de mio

Sou poeta das brenha, não faço o papé
De argum menestrê, ou errante cantô
Que veve vagando, com sua viola
Cantando, pachola, à percura de amô

Não tenho sabença, pois nunca estudei
Apenas eu seio o meu nome assiná
Meu pai, coitadinho! vivia sem cobre
E o fio do pobre não pode estudá

Meu verso rastero, singelo e sem graça
Não entra na praça, no rico salão
Meu verso só entra no campo da roça e dos eito
E às vezes, recordando feliz mocidade
Canto uma sodade que mora em meu peito



O Peixe

Tendo por berço o lago cristalino,
Folga o peixe, a nadar todo inocente,
Medo ou receio do porvir não sente,
Pois vive incauto do fatal destino.

Se na ponta de um fio longo e fino
A isca avista, ferra-a inconsciente,
Ficando o pobre peixe de repente,
Preso ao anzol do pescador ladino.

O camponês, também, do nosso Estado,
Ante a campanha eleitoral, coitado!
Daquele peixe tem a mesma sorte.

Antes do pleito, festa, riso e gosto,
Depois do pleito, imposto e mais imposto.
Pobre matuto do sertão do Norte!




Saudade

Saudade dentro do peito
É qual fogo de monturo
Por fora tudo perfeito,
Por dentro fazendo furo.

Há dor que mata a pessoa
Sem dó e sem piedade,
Porém não há dor que doa
Como a dor de uma saudade.

Saudade é um aperreio
Pra quem na vida gozou,
É um grande saco cheio
Daquilo que já passou.

Saudade é canto magoado
No coração de quem sente
É como a voz do passado
Ecoando no presente


-----Patativa do Assaré------

terça-feira, 14 de julho de 2020


Eu vi Maria Maria.
Eu a vi ontem de dia.
Ela vinha veloz, voava.
Eu a saudei. Ela a mim.
E seguimos nossas vias.

Qila Nobre - 2017

sexta-feira, 10 de julho de 2020

NADA ESPERES


  1. nunca é tarde quando não se sabe que dia é hoje.

eles me chamam de loucos

mas não sabem que em mim a lucidez dorme
como os olhos de um sábio

eles me chamam de louco
porque não aguentam aguentar sua loucura
jogam toda ela na minha cabeça

me matam aos poucos.

Henrique do Valle

A fome/2

Um sistema de desvínculo: Boi sozinho se lambe melhor... O próximo, o outro, não é seu irmão, nem o seu amante. O outro é um competidor, um inimigo, um obstáculo a ser vencido ou uma coisa a ser usada. O sistema, que não dá de comer, tampouco dá de amar: condena muitos à fome do pão e muitos mais à fome de abraços.

Eduardo Galeano - O Livro dos Abraços

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Mansidão


As casas dormiam na hora surda do meio-dia.
O corpo do homem penetrou sob árvores
Na longa quietude estendida da rua.
Tudo permaneceu sem um grito,
Um pedido de socorro sequer.
Ninguém soube se o coração vibrou.
Que sonho o acalenta ninguém adivinhou.
Ninguém sabe nada.
Não traz um lamento,
Nem marca dos pés no chão vai ficar.
Tão triste é a vida sem marca dos pés!
Tudo permaneceu sem um grito,
Um pedido de socorro sequer.
Ele passou sem calúnias
E é possível que sem corpos que o chamassem.
Ninguém soube se o coração vibrou
Porque tudo permaneceu sem fundo suspiro
No estranho momento das coisas paradas.

- Manoel de Barros, "Face imóvel"
Meus versos é como semente
Que nasce arriba do chão;
Não tenho estudo nem arte,
A minha rima faz parte
Das obras da criação




- Patativa do Assaré

Mãe

Noite,
Os anos já pintaram de luar os teus cabelos,
No entanto, tudo parece estar acontecendo agora,
Neste instante.

Noite,
Após tantos anos,
Neste momento,
Vejo tudo diante de mim,
Como se estivesse assistindo a um filme
Da infância:

Nós, teus filhos, todos pequenos,
O relógio parado na hora de privações,
Tantos sonhos de asas quebradas pelos cantos
De nossa casa pobre, sem conforto;

Tu, mulher ainda jovem, tão boa, tão calma,
Constelação de esperança e ternura,
Inspirando segurança,
Inspirando fé, amor,
Em meio a tantos vendavais.

Noite,
Tua luta foi para nós teu maior ensinamento
Sofrias (hoje o sei), entretanto,
Em nossa presença, nunca uma lágrima
Rolou pelo teu rosto.

Noite,
Desde criança aprendi a amar-te,
Mas só hoje, adulto, é que vejo, comovido,
As incontáveis estrelas que brilham em teu ser
E que tantos vendavais não conseguiram apagar.
(Quilombo, p. 47-48).


Arco-íris
Para Regina di Franca


Nós somos Dons Quixotes
Em cavalos de sonho vamos
Por toda parte da cidade
Semeando palavras como sementes
Dividindo o pão do bem mostrando caminhos
Levando esperanças a quem não tem

Nós somos Dons Quixotes não importa
De sonhadores o mundo tem precisão
A vida será céu quando todos os homens
Trouxerem as estrelas aqui pro chão

 - Carlos Assumpção -

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Trecho da Entrevista de Robert Penn Warren com Malcolm X - Junho/1964

Eu acho que Nehru provavelmente era um bom homem, apesar de não ser o que eu faria. Eu não gosto de ninguém que seja passivo. Não gosto de ninguém que é... que é... Que defende o pacifismo ou o sofrimento pacífico de qualquer forma. Eu não admiro isso.
(...)
Eu admiro Mao Tsetung muito mais do que Nehru, porque acho que Nehru trouxe ao seu país o papel de mendigo. Esse papel da Índia e sua dependência do Ocidente dura há anos, desde que ela conquistou sua suposta independência, hoje a mantém tão desamparada e dependente como na primeira independência. Enquanto na China, os chineses lutaram por sua independência. Eles se tornaram militantes desde o início, e hoje eles são [independentes]... Mesmo que não sejam amados, eles são respeitados. Embora o Ocidente não os ame, o Ocidente os respeita. Agora, o Ocidente não respeita a Índia, mas ama a Índia.
(...)
Admiro a posição da China e a posição de Mao Tsetung, mas não posso admirar com respeito a posição de Nehru na Índia. Não consigo fazer isso.


quarta-feira, 24 de junho de 2020

Ei, chega de adiar

Já passou da hora de você ir embora
Eu sei que é tentador acreditar no amor
Até quando o afeto já acabou
Mas pense, você não sente falta dele
E sim do que você mesma nutria
Quando acreditava que contigo seria diferente...
A ideia de estar apaixonada é tão poderosa
Que o vazio da separação
Nos traz a ilusão de que estar junto preenche
Não, você já se sentia sozinha faz tempo
Vagando de noite pelo apartamento
Pés descalços no chão gelado
Passos pausados para não chamar atenção
Olhos úmidos, coração na mão
Engolindo a seco pra não fazer barulho
De braços dados com a solidão
Presta atenção, se você está cansada,
Não pára, corra!
O que nos deixa exaustas é não fazer nada
Enquanto nos humilhamos por qualquer coisa!
Você não merece pouco, porra!
Seu corpo já abrigou Oxum, Dandara, Aqualtune e Ciata
Ancestralidade não é corrente, é estrada...
Não mente...
Eu conheço  esse olhar de quem é gigante pra fora
E se apequena dentro da própria casa
Há quanto tempo você não se olha no espelho?
Eu não aguento te ver assim paralisada
Completamente engessada enquanto o fogo da raiva te consome inteira
Sem construir nada!
Eu me recuso a esperar que morra calda
Nunca é tarde pra recomeçar
Não será fácil
Mas ainda assim estará inteira
Ei, chega de adiar
A fantasia alimenta, mas não sustenta
A vida protege quem se arrisca
Existe um sol aí dentro pra acender
Corra!
Não há mais o que dizer
voa!
Tem gente esperando sua coragem pra se mover
Você só precisa de um motivo
Dentre tantos outros, eu te lembro
Que mais importante do que resistir
É ir...
Engatinhando, tropeçando, caindo, levantando,
Cambaleando, em prantos
Só vai...
O caminho se aprende caminhando.

@ Dandara Suburbana


sábado, 20 de junho de 2020

mais uma da série: preciso colocar fontes

1. Introdução
Os indicadores econômicos são índices numéricos de caráter econômico e servem, a priori, para pontuar e caracterizar a situação de determinada empresa, região, estado ou país no período de tempo considerado. A partir de uma análise detalhada desses dados, pode-se averiguar, entre outras coisas, o nível de desenvolvimento de tal economia, bem como suas tendências e assim planejar uma estratégia eficaz e tomar uma decisão assertiva.
A um nível macroeconômico, compara-se os indicadores de diferentes países ou regiões geográficas através do Produto Interno Bruto (PIB), PIB per capita, Saldo da Balança Comercial, Nível Inflacional, Taxa de Desemprego, montante da Dívida Externa, etc. No setor financeiro, ou seja, nas transições entre empresas e bancos, há a Taxa Selic que é uma taxa estipulada para empréstimos entre bancos, a Poupança, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) medindo a variação de preços e seu impacto no consumo das famílias, entre outros. E, levando em consideração o peso dos processos econômicos no meio social, existem outros tipos de indicadores que visam identificar essa interferência na rotina dos indivíduos do local analisado, são alguns deles: o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), taxa de natalidade e mortalidade, os índices financeiros que indicam a disponibilidade do consumidor em realizar compras, etc.
2. Produto Interno Bruto (PIB)
O PIB é principal indicador do potencial da economia de um país e consiste no somatório de toda a riqueza (bens e serviços finais) a valores monetários produzida por este país em um determinado período de tempo, sendo mais recorrente o cálculo anual ou trimestral. Cada país tem sua própria metodologia para o cálculo do PIB, no Brasil, a instituição produtora é o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), órgão governamental responsável pela coleta e emissão de dados socais, econômicos, etc. Técnicos especializados declararam necessária uma adequação aos padrões internacionais, que são orientações propostas pela ONU, pois assim se obtém dados mais próximos da realidade e com muito mais credibilidade. O novo método trabalha com mais fontes de informação e leva em consideração 110 produtos (antes eram 80) e 56 atividades econômicas (antes eram 43) e passou ainda a utilizar como fontes de dados as pesquisas anuais setoriais da Indústria, Comércio e Construção Civil do IBGE e as receitas declaradas das empresas à Receita Federal. A melhora metodológica significa um cálculo mais preciso das riquezas geradas no país.
O objetivo de se calcular é comparar o nível de crescimento econômico com outras localidades e evidenciar possíveis diagnósticos sobre problemas estruturais e financeiros. Além disso, fornece informações sobre os diversos setores primário (matéria-prima e insumos), secundário (máquinas, equipamentos e produtos finais) e terciário (serviços), demonstrando aqueles em que há uma maior ou menor geração de renda para então enunciar eventuais problemas em algumas atividades, demandando ações públicas para corrigir essas dificuldades.
Essa avaliação, no entanto, é limitada, devido a fatores como o tamanho do país e a quantidade de habitantes e por isso nem sempre o país com o maior PIB é mais rico que outro de menor PIB. Para resolver esse problema, existe o PIB per capita, que é o valor total divido pela número da população, para se chegar a proporção da riqueza em relação à sua população. Que apesar de ser mais preciso, ainda é limitado visto que essa média aritmética simples não leva em consideração a distribuição de riqueza, não revelando as relações de desigualdade. Para determinar se um país realmente se desenvolveu com relação ao seu crescimento do produto interno, alguns economistas como Amartya Sen, defendem a análise do PIB juntamente com análise do IDH.
3. PIB e os agentes econômicos
Existem três óticas que podem ser consideradas para a contabilização do PIB: a ótica da Produção, a mais utilizada, que é a soma de todos os serviços e bens finais, subtraindo o valor da matéria-prima e dos insumos, pois assim se evita o problema da dupla contagem, que consiste em considerar o preço de um componente que já estava incluído no produto finalizado. A ótica da Despesa, que é a soma das despesas de todos os agentes econômicos, são eles o consumo das famílias, os gastos governamentais, os investimentos e o saldo da balança do setor externo (subtraindo o valor das importações do valor das exportações). E a ótica da Renda, que é a soma da remuneração aos fatores produtivos, como salários, aluguéis, juros e lucros. Essa relação é uma identidade contábil: escolhendo um dos métodos, se chegará aos mesmos resultados dos outros dois, é usado inclusive como contra-prova.
Dito isto, o primeiro fator que influencia diretamente a variação do PIB é o consumo das famílias, quanto mais as pessoas gastam, mais o PIB cresce, e isso depende dos salários e dos juros. Se o salário é baixo e os juros altos nas prestações, as pessoas tendem a gastar menos, logo, o PIB cai. Os investimentos das empresas também influenciam no PIB. Se as empresas crescem, compram máquinas, expandem atividades, contratam trabalhadores, e assim movimentam a economia, caso haja juros muito altos, os empresários não gastam tanto investindo. Os gastos do governo são outro fator que impulsiona o PIB, ao realizar obras, por exemplo, são contratados empregados trabalhadores, além dos gastos com material e máquinas, o que ele eleva a produção geral da economia. As exportações, se maiores que as importações, também fazem o PIB crescer, pois mais dinheiro entrando no país é gasto em investimentos e consumo.
4. Setores da Economia no Brasil
O desempenho do PIB é decorrente da performance dos três setores que o compõem a economia: Agropecuária, Indústria e Serviços. No dia primeiro de março de 2018, o IBGE divulgou dados referentes ao PIB do ano de 2017, em valores correntes a 6,6 trilhões de reais e 31.587 reais per capita. Após dois anos seguidos (2015 e 2016) de queda, o PIB brasileiro voltou a crescer, representando o fim da recessão econômica no país, com o crescimento de 1,0% em relação ao ano anterior.
Este resultado é devido, pela ótica da oferta, ao excelente desempenho da agropecuária (+13%), a recuperação do setor industrial (0%) e a um setor de serviços que, já contribuiu de maneira positiva para o PIB de 2017 (+0,3%). Pela ótica da demanda, o consumo das famílias (+1%) e a exportação foram os principais componentes que contribuíram para o PIB positivo. A formação bruta de capital fixo, apesar de ainda negativa (-1,9%), destaca-se pela recuperação que apresentou durante o ano já que havia registrado 10,3% de retração em 2016.
Previsões: de acordo com muitos economistas, a economia brasileira vai crescer ainda mais em 2018 do que em 2017, com o controle inflacionário, queda do desemprego e retomada dos investimentos (internos e externos), o PIB brasileiro deverá crescer por volta de 3% neste ano (fonte: FGV - Fundação Getúlio Vargas).

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Slam #3


Analiso

O que vejo no caminho, os truques do discurso político
Tentando comprar as almas desse viveiro apocalíptico
Leis, armas, amarras do opressor contra o oprimido
Vivendo entre cultos, incultos, pastores cada vez mais ricos
Enquanto o rebanho de ovelhas sobrevive raquítico
Alimentado por frases hipócritas e meros paliativos
Direitos não são caridade, deveres incompreendidos
Pudor corrompido
No princípio era o verbo, anterior ao versículo
Versos perversos denunciam a dor de mais um cristo
Primeiro enxergam a cor da pele depois o sangue do indivíduo
Branco sarará, pardo mulato, preto retinto
A mão que afaga, a outra que aperta o gatilho
O dedo que aponta, lágrimas de crocodilo
Esmola mata de vergonha, mas a vergonha vicia.

Admito

Enquanto procuro um ninho, para procriar princípios
E criar um significado, um que a mim faça sentido
Pois o sofrimento também vicia, a morte em si já é um vício
Não desconsidero a razão dos que já partiram
Comove-me a emoção na lógica do auto sacrifício
Perder a vida por um caminho omisso
Ou passagem só de ida para um destino insubmisso
Ecos na minha mente, mistura de sentimentos e ruídos
Entre a aflição e a ambição, florescem desejos doloridos
Meus sonhos ainda vívidos não foram destruídos
Mais que vícios e resquícios, não sou náufrago
Do outro lado do precipício, sou mar, imensidão
Noites sombrias vieram, dias bons e ruins vem e virão
Não me intimido com isso, seguindo ao infinito e além
Eu mulher preta resisto.

Edgar - Antes que as Libélulas Entrem em Extinção

" - Você prefere explodir na bomba relógio que é o sucesso ou simplesmente morrer sem ser incomodado pelo seu nome?"


domingo, 14 de junho de 2020

Vidraça

A moça atrás da vidraça
espia o moço passar.
O moço nem viu a moça,
ele é de outro lugar.

O que a moça ouvir
o moço sabe contar:
ah, se ele a visse agora,
bem que havia de parar.

Atrás da vidraça, a moça
deixa o peito suspirar.
O moço passou, depressa,
ou a vida vai devagar?

= Guimarães Rosa

sábado, 13 de junho de 2020

Maria, espia:

beba mais um pouco,
fume outros tantos...
Esse santo tanto quanto voa
cai no chão

Mesmo sendo tarde,
uma dor demora
uma hora agora é hora
de largar no chão

Maria, espia só:
havia apenas pó
e como pode pó seguir adiante?

[...]

Pé no chão - Mula Manca & a Fabulosa Figura 

Liberdade e o quê mais?

Social democracia, liberalismo social, comunismo libertário... tudo é utopia. Num contexto em que qualquer uma delas poderia ter dado certo, todas deram completamente errado e a minha resposta a isso é porque o ser humano é, em si, imundo. Acho graça quando falam de lutar pela implementação do sistema ideal, mais graça ainda ao saber que cada um tem seu conceito de mundo ideal. Pra mim há claras distinções entre o ideal e o real, um deve sim existir para se opor e complementar ao outro, mas tentar uni-los é pura ilusão. Como meu idealismo sobreviveria na realidade? Eu respondo: não sobreviveu. Parafraseando Pessoa, tenho uma espécie de dever de sonhar sempre, é o que me abraça, me ajuda, me acolhe no mundo das ideias já que no mundo material preciso de fato ser uma guerreira do cotidiano e resistir às incompletudes inquietantes das sociedades e dos indivíduos. Às vezes, mesmo não sabendo e não querendo separá-los, logo percebo a ineficiência de se pensar nisso com um objetivo final de felicidade coletiva, porque os homens são individualistas inatos e se utilizam disso para fins egoístas com tendências à crueldade exacerbada para com os outros seres vivos. Os processos ocorridos no espaço-tempo nos trouxeram até aqui, no entanto, nossas inspirações e aspirações continuam as mesmas, as teorias foram complementadas, a tecnologia proporcionou melhorias físicas, a ciência nos orientou para as possíveis soluções, os erros foram desacreditados, contudo, repetidos e pior, aprimorados. Sofremos das mesmas mazelas, só que em escalas diferentes; em tempos históricos diferentes, a mesma essência de problemas. Insight para a realidade: uma revolução social é ineficaz, não há unidade de ação e pensamento, eu mesma não quero me tornar uno com aqueles em que deposito o meu desprezo. Se vamos tratar de revoluções, estas devem ser por todos os lugares constantes, pois assim é que são as guerras. O ser ou o grupo que melhor se organizar estará na frente, o poder é a organização, a inteligência na face de estratégia. Mesmo que consigamos um estado de bem estar social brando, já que composto por homens, sempre estará sujeito às ambições e corrupções. Mesmo que com boas intenções, posso eu subjugar toda à natureza aos meus anseios? E se assim eu me tornar uma tirana? Se tenho essa dúvida em mim, como posso entregar minha confiança ao outro que é tão demasiadamente humano como eu? É necessário haver oposição permanentemente. Os evoluídos, aqueles em que acreditamos estar acima disso tudo, não podem nos guiar pois já não estão mais aqui. Tento ir buscando esse tipo de evolução também por realmente acreditar que a felicidade geral virá a longo prazo; a longo prazo todos estaremos mortos.

O fim do que nunca se iniciou

Na música, alguém prefere se queimar na cama, em chamas, por um outro alguém qualquer do que ficar só, retida em si. Eu, entretida em lembranças molhadas e destrutivas - submetida a quereres, carinhos e aflições e ainda assim desajustada à companhia -, não ouvi direito e achei que havia me identificado com a letra, voltei a reprodução para cantar em conjunto quando percebi o erro cometido, porque eu sou do tipo contrário. Em contrapartida à ilusão, me contemplo: prefiro estar só do que esta solidão.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Elegia – Indo para o leito

Vem, Dama, vem que eu desafio a paz;
Até que eu lute, em luta o corpo jaz.
Como o inimigo diante do inimigo,
Canso-me de esperar se nunca brigo.
Solta esse cinto sideral que vela,
Céu cintilante, uma área ainda mais bela.
Desata esse corpete constelado,
Feito para deter o olhar ousado.
Entrega-te ao torpor que se derrama
De ti a mim, dizendo: hora da cama.
Tira o espartilho, quero descoberto
O que ele guarda quieto, tão de perto.
O corpo que de tuas saias sai
É um campo em flor quando a sombra se esvai.
Arranca essa grinalda armada e deixa
Que cresça o diadema da madeixa.
Tira os sapatos e entra sem receio
Nesse templo de amor que é o nosso leito.
Os anjos mostram-se num branco véu
Aos homens. Tu, meu anjo, és como o Céu
De Maomé. E se no branco têm contigo
Semelhança os espíritos, distingo:
O que o meu Anjo branco põe não é
O cabelo mas sim a carne em pé.

Deixa que minha mão errante adentre.
Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.
Minha América! Minha terra à vista,
Reino de paz, se um homem só a conquista,
Minha Mina preciosa, meu império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
Liberto-me ficando teu escravo;
Onde cai minha mão, meu selo gravo.

Nudez total! Todo o prazer provém
De um corpo (como a alma sem corpo) sem
Vestes. As jóias que a mulher ostenta
São como as bolas de ouro de Atlanta:
O olho do tolo que uma gema inflama
Ilude-se com ela e perde a dama.
Como encadernação vistosa, feita
Para iletrados a mulher se enfeita;
Mas ela é um livro místico e somente

A alguns (a que tal graça se consente)
É dado lê-la. Eu sou um que sabe;
Como se diante da parteira, abre-
Te: atira, sim, o linho branco fora,
Nem penitência nem decência agora.

Para ensinar-te eu me desnudo antes:
A coberta de um homem te é bastante.

10- Onde, qual almofada sobre o leito,
A areia grávida inchou para apoiar
A inclinada cabeça da violeta,
Nós nos sentamos, olhar contra olhar.

Nossas mãos duramente cimentadas
No firme bálsamo que delas vem,
Nossas vistas trançadas e tecendo
Os olhos em um duplo filamento;

Enxertar mão em mão é até agora
Nossa única forma de atadura
E modelar nos olhos as figuras
A nossa única propagação.

Como entre dois exércitos iguais,
Na incerteza, o Acaso se suspende,
Nossas almas (dos corpos apartadas
Por antecipação) entre ambos pendem.

E enquanto alma com alma negocia,
Estátuas sepulcrais ali quedamos
Todo o dia na mesma posição,
Sem mínima palavra, todo o dia.

Se alguém – pelo amor tão refinado
Que entendesse das almas a linguagem,
E por virtude desse amor tornado
Só pensamento – a elas se chegasse,

Pudera (sem saber que alma falava
Pois ambas eram uma só palavras),
Nova sublimação tomar do instante
E retornar mais puro do que antes.

Nosso Êxtase – dizemos – nos dá nexo
E nos mostra do amor o objectivo,
Vemos agora que não foi o sexo,
Vemos que não soubemos o motivo.

Mas que assim como as almas são misturas
Ignoradas, o amor reamalgama
A misturada alma de quem ama,
Compondo duas numa e uma em duas.

Transplanta a violeta solitária:
A força, a cor, a forma, tudo o que era
Até aqui degenerado e raro
Ora se multiplica e regenera.

Pois quando o amor assim uma na outra
Interanimou duas almas,
A alma melhor que dessas duas brota
A magra solidão derrota,

E nós que somos essa alma jovem,
Nossa composição já conhecemos
Por isto: os átomos de que nascemos
São almas que não mais se movem.

Mas que distância e distracção as nossas!
Aos corpos não convém fazermos guerra:
Não sendo nós, não convém fazermos guerra:
Inteligências, eles as esferas.

Ao contrário, devemos ser-lhes gratas
Por nos (a nós) haverem atraído,
Emprestando-nos forças e sentidos.
Escória, não, mas liga que nos ata.
A influência dos céus em nós atua

Só depois de se ter impresso no ar.
Também é lei de amor que alma não flua
Em alma sem os corpos transpassar.

Como o sangue trabalha para dar
Espíritos, que às almas são conformes,
Pois tais dedos carecem de apertar
Esse invisível nó que nos faz homens,

Assim as almas dos amantes devem
Descer às afeições e às faculdades
Que os sentidos atingem e percebem,
Senão um Príncipe jaz aprisionado.

Aos corpos, finalmente, retornemos,
Descortinando o amor a toda a gente;
Os mistérios do amor, a alma os sente,
Porém o corpo é as páginas que lemos.

Se alguém – amante como nós – tiver
Esse diálogo a um ouvido a ambos,
Que observe ainda e não verá qualquer
Mudança quando aos corpos nos mudamos.

 John Donne ~~

DELÍRIO

Nua, mas para o amor não cabe o pejo
Na minha a sua boca eu comprimia.
E, em frêmitos carnais, ela dizia:
– Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo!

Na inconsciência bruta do meu desejo
Fremente, a minha boca obedecia,
E os seus seios, tão rígidos mordia,
Fazendo-a arrepiar em doce arpejo.

Em suspiros de gozos infinitos
Disse-me ela, ainda quase em grito:
– Mais abaixo, meu bem! – num frenesi.

No seu ventre pousei a minha boca,
– Mais abaixo, meu bem! – disse ela, louca,
Moralistas, perdoai! Obedeci....


Olavo Bilac_______

quinta-feira, 11 de junho de 2020

PAZ

Esta janela aberta
As cadeiras em ordem por volta da mesa
A luz da lâmpada na moringa
Duas meninas que conversam longe…

Paz!
O telefone que descansa
As cortinas azuis que nem balançam

Mas sobre uma cadeira alguém está chorando.
Paz!

- Manoel de Barros


Ver no escuro

Uma vez quiseram me louca, a arder
e eu ardi com uma discrição
de um fogo posto
porque a cura vai na mesma direção
que a nossa febre

Ateei-me como um relâmpago inesperado
à luz do dia
Eu parecia uma basílica em chamas
de altar por estrear, a arder sozinha

Sempre me recusei a arder como os outros

Ardam-se mais à esquerda ou mais à direita
mais ao vento de sul ou de norte
mas labaredem-se, sejam fogos que ardem!

Porque pior que desdita loucura
é toda gente andar em brasa
mas ninguém chegar a incêndio

E no fim são todos cinza.

Cláudia R. Sampaio

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Texto para uma separação

Olhe aqui, olhos de azeviche
Vamos acertar as contas
porque é no dia de hoje
que cê vai embora daqui...
Mas antes, por obséquio:
Quer me devolver o equilíbrio?
Quer me dizer por que cê sumiu?
Quer me devolver o sono meu doril?
Quer se tocar e botar meu marcapasso pra consertar?
Quer me deixar na minha?
Quer tirar a mão de dentro da minha calcinha?
Olhe aqui, olhos de azeviche:
Quer parar de torcer pro meu fim
dentro do meu próprio estádio?
Quer parar de saxdoer no meu próprio rádio?
Vem cá, não vai sair assim...
Antes, quer ter a delicadeza de colar meu espelho?
Assim: agora fica de joelhos
e comece a cuspir todos os meus beijos.
Isso. Agora recolhe!
Engole a farta coreografia destas línguas
Varre com a língua esses anseios
Não haverá mais filho
pulsações e instintos animais.
Hoje eu me suicido ingerindo
sete caixas de anticoncepcionais.
Trata-se de um despejo
Dedetize essa chateação que a gente chamou de desejo.
Pronto: última revista
Leve também essa bobagem
que você chamou
de amor à primeira vista.
Olhos de azeviche, vem cá:
Apague esse gosto de pescoço da minha boca!
E leve esses presentes que você me deu:
essa cara de pau, essa textura de verniz.
Tire também esse sentimento de penetração
esse modo com que você me quis
esses ensaios de idas e voltas
essa esfregação
esse bob wilson erotizado
que a gente chamou de tesão.
Pronto. Olhos de azeviche, pode partir!
Estou calma. Quero ficar sozinha
eu coa minha alma. Agora pode ir.
Gente! Cadê minha alma que estava aqui?

- Elisa Lucinda - 

Sorriso Aberto

É, foi ruim a beça
Mas pensei depressa
Numa solução para a depressão
Fui ao violão

Fiz alguns acordes
Mas pela desordem 
Do meu coração, não foi mole não
Quase que sofri desilusão.

Tristeza foi assim 
se aproveitando pra tentar 
se aproximar...
Ai de mim
Se não fosse o pandeiro, o ganzá 
e o tamborim, pra ajudar a marcar
meu tamborim, pra ajudar a marcar...

Logo eu 
Com meu sorriso aberto
E o paraíso perto
A vida melhorar

Malandro desse tipo
Que balança mas não cai
De qualquer jeito vai
Ficar bem mais legal
Pra nivelar a vida em alto astral 


- Jovelina Pérola Negra - 

Um dia ela foi flor nos jardins

Apesar de me sentir debaixo de uma chuva de remorsos, me mantive teso penhasco, pendúculo sem flor, escondendo, por trás da epiderme transparente, fraturas expostas numa bandeja cirúrgica estendida como uma cuia à existência. A ideia da morte pesava como um território onde predominava o silêncio, e que para alcançá-lo tornava-se necessário se submeter a um trajeto desconhecido, a transformar a vida em algo destituído de ilusões, um camelo de batalha fatalmente perdida. Amanheci ali mesmo, de mãos postas, desolado ante uma garrafa de cerveja, morna, pela metade, um copo vazio e minha gula sobreflutuando algumas rodelas de linguiça. Senti um sufocante gosto de bosta na boca! Meio dia! Como combinado, estava pronto a seguir o plano traçado por Monet. Como um bate-estaca sonâmbulo e serelépido, me recompus para o ritual. Além da marquise, tal qual uma pestana orvalhada, a avenida de mão-tripla gemia aos afagos dos pneus das baratas Metálicas e Gafanhotos Plásticos dirigidos por espécies de antropoparafusos. Doutrolado da avenida, milhões de vidas embrulhadas por prédios sentados, quadrados, disformes, de cujas janelas se precipitavam arregalados piscantes olhares. No seu canteiro central, no espaço reservado às floreiras, vários sacos de lixos rasgados pelos impactos de um vento frio e forte, exibindo, através dos furos semelhantes a feridas insaráveis: latas de suco e doces, sombras de lábios em guardanapos, seringas, pedaços de TV, luminárias inúteis e caixas vazias. Pelas calçadas, Morcegos e Ratos enrolados em gazes passavam como autômatos de carne e ossos. Aos pés dos prédios, doutrolado da avenida, um out-door chama uma daquelas baratas de “novo membro da família”. Por um instante pensei em recolher minha sombra pisada e ignorada pelos transeuntes entre as mesas, onde algumas Lagartixas classe médias falavam de política e concordavam com tudo. Dois garçons compunham um ballet como duas mariposas tontas. Sentia-me ora amarrado a uma cadeira elétrica, ora como um corpo a espera de reconhecimento numa ante-sala de dilaceração. Instintivamente, por um momento, debrucei-me, sem nenhum interesse, sobre um jornal amarrotado, do dia anterior, que Monet deixara sobre a mesa. No piso sujo, ainda viva, a ultima cusparada de Monet, como uma chaga norteando o seu caminho e o meu. Mesmo pensando que tudo caminhava irreversivelmente para a morte, havia uma expectativa de que algo desviasse o rumo dos acontecimentos. Mas, logo aquela mistura de medo e esperança se desfez com aquele entardescer.

- Arnaldo Xavier -

quarta-feira, 3 de junho de 2020

"Será que ainda há quem dê oportunidade pra si e para o outro, e não apenas sangre suas feridas em cima de quem não as provocou?"

domingo, 31 de maio de 2020

Poema da necessidade

É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades
é preciso substituir nós todos.

É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbado,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.

É preciso viver com os homens
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar O FIM DO MUNDO.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 30 de maio de 2020

Resisto

De onde vem este medo?
sou
sem mistério existo
busco gestos
de parecer
atando os feitos
que me contam
grito
de onde vem
esta vergonha
sobre mim?

Eu, mulher, negra,
RESISTO.

lzira dos Santos Rufino

Poema de Amor

Esta noite sonhei em oferecer-te o anel de Saturno
E quase ia morrendo com o receio de que não te coubesse no dedo.

Jorge Sousa Braga.

sábado, 23 de maio de 2020

Amor Cinza

Na linha do horizonte tem um fundo cinza
Pra lá dessa linha eu me lanço, e vou

Não aceito quando dizem que o fim é cinza
Se eu vejo cinza como um início em cor

Quando tudo finda, dizem, virou cinza
Equívoco pois cinza cura, poesia eu sou

O traje cinza lembra fidalguia
Quarta-feira cinza é dia de louvor

Vamos celebrar, o amor há de renascer das cinzas
Vamos festejar o cinza com amor

Gota de orvalho prateada é cinza
Massa encefálica é cinza, amor

A purificação também se faz com cinza
Fênix renasceu das cinzas com honor

Só quero dengo quando o dia é cinza
Ler poesia e cantar ao sol

Dedilho a viola e sonho colorido
E vejo no amante que o cinza desnudou

Vamos celebrar, o amor há de renascer das cinzas
Vamos festejar o cinza com amor...

Mateus Aleluia


*nem vou dizer que cinza é a minha cor rs

sexta-feira, 22 de maio de 2020

As ruínas de Selinunte

Correspondendo a fragmentos de astros,
A corpos transviados de gigantes,
A formas elaboradas no futuro,
Severas tombando
Sobre o mar em linha azul, as ruínas
Severas tombando
Compõem, dóricas, o céu largo.
Severas se erguendo,
Procuram-se, organizam-se,
Em forma teatral suscitam o deus
Verticalmente, horizontalmente.

Nossa medida de humanos
– Medida desmesurada –
Em Selinunte se exprime:
Para a catástrofe, em busca
Da sobrevivência, nascemos.


Murilo Mendes

Se estou equivocada, favor, corrija-me

Bolsonaro é o pior agravante da crise do corona no Brasil, isso não tem discussão. Mas o vírus se alastrou dessa forma, principalmente nas periferias, pela falta de estrutura nas cidades, e isso é responsabilidade de todos os governantes atuais e antigos.

A maioria dos lugares não tem um sistema de água encanada realmente segura, não tem tratamento de esgoto, nas instituições de saúde e educação sofremos com a falta de profissionais e materiais desde: sempre; até as pessoas contempladas por programas sociais se acostumaram com esses paliativos de bolsa família etc, ao invés de entender a necessidade da reforma agrária e da taxação de grandes fortunas para diminuir de fato a desigualdade. A cultura sempre teve q esperar pela boa vontade de editais ao invés da criação de uma mercado artístico que incentive o consumo e q ao mesmo tempo possa suprir o trabalho, os bancos sempre receberam recursos do governo com o argumento de facilitar crédito pras pessoas e pequenas empresas, mas sempre usaram esses recursos em favor próprio (especulação e propinas).

Nada mudou, piorou muito. Pelo q vejo nas manchetes, outros movimentos independentes como MST, quilombolas, coletivos e pessoas individuais que estão realmente tentando tapar os buracos deixados por décadas de desgoverno, gente que nem grana tem dando o mínimo pra ajudar sua comunidade. O resto é politicagem e vocês parecem retardados defendendo políticos.

Deaculpaê, mas critico Lula e afins antes de ser modinha kkkkkkkk ele não merece voltar. Discurso fascista é de quem não permite a expressão das diversas opiniões e ainda continuam defendendo a centralização do Estado na figura de um "Messias salvador da pátria"

terça-feira, 19 de maio de 2020

''Depois que escurece, o bagulho é doido''

A data de hoje, em 1925, é o dia do nascimento de Malcolm X, o mesmo dia em que, 95 anos depois, acordo com a notícia de que mais uma criança preta foi assassinada em uma operação da polícia. Não me interessa se os brancos sabem quem foi ele, não me interessa até mesmo se pretos acadêmicos submetidos às ideologias de brancos estudem sobre ele (podendo eu mesma estar nesse grupo). O que me questiono é como as favelas, as periferias, os guetos não o conhecem, se justamente esse era o público-alvo dele?

Penso que se o conhecessem, o grupo de traficantes não entraria na casa de inocentes para fugir da PM resultando em mortes de mais crianças pretas marginalizadas; penso que esse grupo de traficantes poderia ser um dos braços armados do movimento negro organizado, com leis próprias, poderia continuar com atividades ilícitas sim para capitar recursos e burlar esse sistema racista sem colocar vidas pretas em risco, principalmente a de crianças; penso que a população preta unida poderia adotar estratégias como rotas de fuga das autoridades sem resultar em mortes inocentes, e sobretudo, essas autoridades não teriam pretos capitães do mato para usar como massa de manobra, não existiriam pretos dentro da polícia militar; penso que se o conhecessem realmente, seria adotada uma postura moral, muitos comportamentos que nos levam ao precipício seriam abandonados, como o vício em drogas, especialmente o álcool e a cocaína, o estímulo à ostentação capitalista, a violência doméstica, a depravação sexual e a prostituição.

Ele pregava uma postura, de combate ao racismo e de proteção e organização preta, e eu acredito que é justamente isso que nos falta: postura; a liberdade pra mim não é você poder fazer o que quiser, sem arcar com as consequências, penso que liberdade é ter a capacidade de reflexão e poder escolher o melhor pra si e para os outros, buscando o equilíbrio e assumindo o resultado dessa escolha. A sociedade pode definir o meio em que vivemos, mas nós é que escolhemos a nossa conduta.

Pra falar a verdade, eu nem o conheço bem também, talvez por isso eu só... penso, e não faço nada demais para agir.

O dia chora.

sábado, 16 de maio de 2020

Gasolina, garrafa, pedaço de pano

A arma do povo contra o estado é o próprio povo
Um novo homem, nova sociedade baseada em liberdade
Estão nos matando, por que não matá-los?
Estamos apenas nos defendendo
Extinção de classes, apenas igualdade
É isso que estamos querendo

- Life Is A Lie

Carne

Carne de cobaia iraquiana
John Wayne, estupre uma criança
Bento XVI, Vire-se a Meca
Bush, dê-nos esperança!

Petróleo é de beber com um gosto de amargar
O sangue faz a máquina girar
Morre um ditador na América do Sul
César! Fogo! Nu!

Isso é religião, política, loucura
Meu Deus! Osama nas alturas!
Os seus cowboys vampiros têm os olhos azuis
Tirem esse índio dessa cruz!

O clone do humano, o clone da ovelha
O rosto de Jesus na imagem da besta
Montados em seus cavalos exterminando os negros
O lixo, o resto, o feio

O mundo é uma maravilha, mas não posso viver
Pois sinto nojo de tudo que vejo
Inclusive na minha cara cínica no espelho
O que me deixa em intenso desespero

Essas engrenagens querem me amassar
Eu quero deixar de existir

As cenas de terror que não saem da minha mente
Nunca mais vou conseguir sorrir

Tem sentido procriar?
Pra onde prosseguir?

Mukeka di Rato

quinta-feira, 14 de maio de 2020

SEMPRE HAVERÁ DESIGUALDADE

... mas essa diferença precisa ser cruel?

UMA PAIXÃO

Visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores

vem ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos

vem antes que desperte em mim o grito
de alguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro

perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água

vem com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te


FORAM BREVES E MEDONHAS AS NOITES DE AMOR
foram breves e medonhas as noites de amor
e regressar do âmago delas esfiapava-lhe o corpo
habitado ainda por flutuantes mãos

estava nu
sem água e sem luz que lhe mostrasse como era
ou como poderia construir a perfeição

os dias foram-se sumindo cor de chumbo
na procura incessante doutra amizade
que lhe prolongasse a vida

e uma vez acordou
caminhou lentamente por cima da idade
tão longe quanto pôde
onde era possível inventar outra infância
que não lhe ferisse o coração


RESPOSTA À EMILE
A guerra daqui não mata - mas abre fissuras
Nos nervos - é o que te posso dizer
Deste país que escolhi para definhar

A cidade é u amontoado de lixo de tapumes
De sucata e de casas que se desmoronam
A realidade estragou os olhos das crianças

No fim do corpo em que me escondo espalhou-se
A treva onde
Guardo a corola azulínea de tua ausência

E o marulho nítido de um mar que canta
E um calor sísmico nos lábios que beijaste

É - me difícil continuar a escrever-te
O que me destrói - sei que estou fodido
E tu já não és meu

Preparo-me para entreabrir os olhos e
Deixar escorrer a convulsão oleosa das lágrimas
E das coisas tristes.


A PAISAGEM PROLONGA-SE
a paisagem prolonga-se num S de flores azuladas
ela entra nas ruínas
junto ao ângulo penumbroso da casa destruída
está vestida de branco quando ele lhe fala
ambos têm o olhar vago
ela recorta-se sobre um fundo de árvores nuas
ele está de pé encostado a um muro de pedra
ouve-se alguém dizer: não tenhas medo
so
somos apenas actores dum sonho paralelo à paisagem
os lábios dela tremem ou sorriem
ele encolhe-se mais contra a parede
o silêncio ainda não os abandonou
ela espreita-o
ele desenha-se exacto no centro do écran
(de novo uma voz off)
um vento vertical adere à casa
onde as raízes dos cardos irrompem dos alicerces
e quando ela se vira para o interior das ruínas
prende-se-lhe o olhar num ponto inexistente
ele já ali não está
apenas a objectiva da câmara continua a segui-la


LÁPIDE, DE «CARTA DA ÁRVORE TRISTE»
a contínua solidão torna-se claridade
iridiscência lume
que incendeia o coração daquele cujo ofício
é escrever e olhar o mundo a partir da treva
humildemente
foi este o trabalho que te predestinaram
viver e morrer nesse simulacro de inferno

meu deus! tinha de escolher a melhor maneira de arder
até que de mim nada restasse senão osso
e meia dúzia se sílabas sujas

« Al Berto »

POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

MANUEL BANDEIRA

Sonhei

Sonhei que estava morta
Vi um corpo no caixão
Em vez de flores eram Iivros
Que estavam nas minhas mãos
Sonhei que estava estendida
No cimo de uma mesa
Vi o meu corpo sem vida
Entre quatro velas acesas

Ao lado o padre rezava
Comoveu-me a sua oração
Ao bom Deus ele implorava
Para dar-me a salvação
Suplicava ao Pai Eterno
Para amenizar o meu sofrimento
Não me enviar para o inferno
Que deve ser um tormento

Ele deu-me a extrema-unção
Quanta ternura notei
Quando foi fechar o caixão
Eu sorri… e despertei.

– Carolina Maria de Jesus, em “Antologia pessoal”. 


Quarto de despejo

Quando infiltrei na literatura
Sonhava so com a ventura
Minhalma estava chêia de hianto
Eu nao previa o pranto. Ao publicar o Quarto de Despejo
Concretisava assim o meu desejo.
Que vida. Que alegria.
E agora… Casa de alvenaria.
Outro livro que vae circular
As tristêsas vão duplicar.
Os que pedem para eu auxiliar
A concretisar os teus desejos
Penso: eu devia publicar…
– o ‘Quarto de Despejo’.

No início vêio adimiração
O meu nome circulou a Nação.
Surgiu uma escritora favelada.
Chama: Carolina Maria de Jesus.
E as obras que ela produz

Deixou a humanidade habismada
No início eu fiquei confusa.
Parece que estava oclusa
Num estôjo de marfim.
Eu era solicitada
Era bajulada.
Como um querubim.

Depôis começaram a me invejar.
Dizia: você, deve dar
Os teus bens, para um assilo
Os que assim me falava
Não pensava.
Nos meus filhos.

As damas da alta sociedade.
Dizia: praticae a caridade.
Doando aos pobres agasalhos.
Mas o dinheiro da alta sociedade
Não é destinado a caridade
É para os prados, e os baralhos

E assim, eu fui desiludindo
O meu ideal regridindo
Igual um côrpo envelhecendo.
Fui enrrugando, enrrugando…
Petalas de rosa, murchando, murchando
E… estou morrendo!

Na campa silente e fria
Hei de repousar um dia…
Não levo nenhuma ilusão
Porque a escritora favelada
Foi rosa despetalada.
Quantos espinhos em meu coração.
Dizem que sou ambiciosa
Que não sou caridosa.
Incluiram-me entre os usurários
Porque não critica os industriaes
Que tratam como animaes.
– Os operários…

– Carolina Maria de Jesus, em “Meu estranho diário”

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Poema -

Eu hoje tive um pesadelo e levantei atento, a tempo
Eu acordei com medo e procurei no escuro
Alguém com seu carinho e lembrei de um tempo
Porque o passado me traz uma lembrança
Do tempo que eu era criança
E o medo era motivo de choro
Desculpa pra um abraço ou um consolo

Hoje eu acordei com medo, mas não chorei
Nem reclamei abrigo
Do escuro eu via um infinito sem presente
Passado ou futuro
Senti um abraço forte, já não era medo
Era uma coisa sua que ficou em mim
De repente a gente vê que perdeu
Ou está perdendo alguma coisa
Morna e ingênua
Que vai ficando no caminho
Que é escuro e frio, mas também bonito
Porque é iluminado
Pela beleza do que aconteceu
Há minutos atrás

 Roberto Frejat / Agenor Neto

A melancolia,

a reflexão sobre a infelicidade consumada, nada tem a ver com o vulgar desejo de morte. É uma forma de resistência. E, sobretudo ao nível da arte, a sua função está longe de ser meramente reativa ou reacionária. Quando ela, de olhar fixo, pensa uma vez mais no que nos arrastou até aqui, bem se vê que o impulso que leva ao desespero e o que leva ao conhecimento são agentes idênticos. A descrição da infelicidade traz em si a possibilidade de a superar.

 W.G.Sebald

terça-feira, 21 de abril de 2020

Versos Íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!


Agonia de um filósofo

Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...
O Inconsciente me assombra e eu nêle tolo
Com a eólica fúria do harmatã inquieto!

Assisto agora à morte de um inseto!...
Ah! todos os fenômenos do solo
Parecem realizar de pólo a pólo
O ideal de Anaximandro de Mileto!

No hierático areópago heterogêneo
Das idéas, percorro como um gênio
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...

Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo, igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!


Idealismo

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isso que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?!

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
— Alavanca desviada do seu fulcro —

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!

O meu nirvana

No alheamento da obscura forma humana,
De que, pensando, me desencarcero,
Foi que eu, num grito de emoção, sincero
Encontrei, afinal, o meu Nirvana!

Nessa manumissão schopenhauereana,
Onde a Vida do humano aspeto fero
Se desarraiga, eu, feito força, impero
Na imanência da Idéia Soberana!

Destruída a sensação que oriunda fora
Do tato — ínfima antena aferidora
Destas tegumentárias mãos plebéias —

Gozo o prazer, que os anos não carcomem,
De haver trocado a minha forma de homem
Pela imortalidade das Idéias!

Poema negro
A Santos Neto

Para iludir minha desgraça, estudo.
Intimamente sei que não me iludo.
Para onde vou (o mundo inteiro o nota)
Nos meus olhares fúnebres, carrego
A indiferença estúpida de um cego
E o ar indolente de um chinês idiota!

A passagem dos séculos me assombra.
Para onde irá correndo minha sombra
Nesse cavalo de eletricidade?!
Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:
— Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?
E parece-me um sonho a realidade.

Em vão com o grito do meu peito impreco!
Dos brados meus ouvindo apenas o eco,
Eu torço os braços numa angústia douda
E muita vez, à meia-noite, rio
Sinistramente, vendo o verme frio
Que há de comer a minha carne toda!

É a Morte — esta carnívora assanhada —
Serpente má de língua envenenada
Que tudo que acha no caminho, come...
— Faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro,
Sai para assassinar o mundo inteiro,
E o mundo inteiro não lhe mata a fome!

Nesta sombria análise das cousas,
Corro. Arranco os cadáveres das lousas
E as suas partes podres examino. . .
Mas de repente, ouvindo um grande estrondo,
Na podridão daquele embrulho hediondo
Reconheço assombrado o meu Destino!

Surpreendo-me, sozinho, numa cova.
Então meu desvario se renova...
Como que, abrindo todos os jazigos,
A Morte, em trajos pretos e amarelos,
Levanta contra mim grandes cutelos
E as baionetas dos dragões antigos!

E quando vi que aquilo vinha vindo
Eu fui caindo como um sol caindo
De declínio em declínio; e de declínio
Em declínio, como a gula de uma fera,
Quis ver o que era, e quando vi o que era,
Vi que era pó, vi que era esterquilínio!

Chegou a tua vez, oh! Natureza!
Eu desafio agora essa grandeza,
Perante a qual meus olhos se extasiam.
Eu desafio, desta cova escura,
No histerismo danado da tortura
Todos os monstros que os teus peitos criam.

Tu não és minha mãe, velha nefasta!
Com o teu chicote frio de madrasta
Tu me açoitaste vinte e duas vezes...
Por tua causa apodreci nas cruzes,
Em que pregas os filhos que produzes
Durante os desgraçados nove meses!

Semeadora terrível de defuntos,
Contra a agressão dos teus contrastes juntos
A besta, que em mim dorme, acorda em berros
Acorda, e após gritar a última injúria,
Chocalha os dentes com medonha fúria
Como se fosse o atrito de dois ferros!

Pois bem! Chegou minha hora de vingança.
Tu mataste o meu tempo de criança
E de segunda-feira até domingo,
Amarrado no horror de tua rede,
Deste-me fogo quando eu tinha sede...
Deixa-te estar, canalha, que eu me vingo!

Súbito outra visão negra me espanta!
Estou em Roma. É Sexta-feira Santa.
A treva invade o obscuro orbe terrestre.
No Vaticano, em grupos prosternados,
Com as longas fardas rubras, os soldados
Guardam o corpo do Divino Mestre.

Como as estalactites da caverna,
Cai no silêncio da Cidade Eterna
A água da chuva em largos fios grossos...
De Jesus Cristo resta unicamente
Um esqueleto; e a gente, vendo-o, a gente
Sente vontade de abraçar-lhe os ossos!

Não há ninguém na estrada da Ripetta.
Dentro da Igreja de São Pedro, quieta,
As luzes funerais arquejam fracas...
O vento entoa cânticos de morte.
Roma estremece! Além, num rumor forte,
Recomeça o barulho das matracas.

A desagregação da minha idéia
Aumenta. Como as chagas da morféia
O medo, o desalento e o desconforto
Paralisam-se os círculos motores.
Na Eternidade, os ventos gemedores
Estão dizendo que Jesus é morto!

Não! Jesus não morreu! Vive na serra
Da Borborema, no ar de minha terra,
Na molécula e no átomo... Resume
A espiritualidade da matéria
E ele é que embala o corpo da miséria
E faz da cloaca uma urna de perfume.

Na agonia de tantos pesadelos
Uma dor bruta puxa-me os cabelos,
Desperto. É tão vazia a minha vida!
No pensamento desconexo e falho
Trago as cartas confusas de um baralho
E um pedaço de cera derretida!

Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme.
Eu, somente eu, com a minha dor enorme
Os olhos ensangüento na vigília!
E observo, enquanto o horror me corta a fala,
O aspecto sepulcral da austera sala
E a impassibilidade da mobília.

Meu coração, como um cristal, se quebre
O termômetro negue minha febre,
Torne-se gelo o sangue que me abrasa,
E eu me converta na cegonha triste
Que das ruínas duma casa assiste
Ao desmoronamento de outra casa!

Ao terminar este sentido poema
Onde vazei a minha dor suprema
Tenho os olhos em lágrimas imersos...
Rola-me na cabeça o cérebro oco.
Por ventura, meu Deus, estarei louco?!
Daqui por diante não farei mais versos.

Solitário

Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos contorta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
- Velho caixão a carregar destroços -

Levando apenas na tumba carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!

Augusto dos Anjos