segunda-feira, 30 de julho de 2018

Soneto da doce queixa

Assusta-me perder a maravilha
de teus olhos de estátua e o acento
que pela noite a face me polvilha
a erma rosa que há no teu alento.

Tenho pena de ser sobre esta orilha
tronco sem ramos, e a dor que sustento
é não ter eu a flor, polpa ou argila
pró verme de meu próprio sofrimento

se és meu tesouro oculto, que sitio,
se és minha cruz e meu sofrer molhado
e eu o cão preso de teu senhorio,

não me deixes perder o que me é dado:
vem decorar as águas do teu rio
com folhas de meu outono perturbado.

[Federico Garcia Lorca, "Soneto de la dulce queja"]

sábado, 28 de julho de 2018

impus uma regra a mim

de ser o melhor que eu puder
e enfim reagir
da forma mais sábia.

exercício dolorido
me dilacera e me diminui
talvez não precise ser assim,
é dificil fazê-lo

por me sentir deslocada no meio
que se orgulha de sua mediocridade
que defende com ódio e violência
o seu direito de ser pequeno.

e do alto da minha grandeza
também chamada arrogância
não me permito a ninguém machucar
e, diretamente, me machucar
não permito a ninguém.

mas indiretamente
perceber as coisas estagnadas
imersas num mar de ignorância,
infundada intolerância,
me deixa triste e magoada.

segunda-feira, 23 de julho de 2018

¡Peligro! Politicos en campaña #1

Representantes do povo que só representam interesses próprios.
Contratos e concessões que só beneficiam seus próprios negócios,
Enquanto na desigualdade crescente, a sociedade se mutila em ódio.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Prefácio


Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) —
sem nome.
Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.
Insetos errados de cor caíam no mar.
A voz se estendeu na direção da boca.
Caranguejos apertavam mangues.
Vendo que havia na terra
Dependimentos demais
E tarefas muitas —
Os homens começaram a roer unhas.
Ficou certo pois não
Que as moscas iriam iluminar
O silêncio das coisas anônimas.
Porém, vendo o Homem
Que as moscas não davam conta de iluminar o
Silêncio das coisas anônimas —
Passaram essa tarefa para os poetas.

[Manoel de Barros]

As tardes de te amar sem medo.

Atrás de um grande amor que passou
outro grande amor
e outro ali, numa foto queimada
que paira aqui.
E a memória transa saudades na lembrança
do amor passado
idealizado
como o sonho bonito
que ninguém sonhou.

A mente inflama
e depois apaga
logo mais retorna
e você não sabe
se o silêncio é sorte
se é chão de morte
o cessar da chama.

E a tentativa forçada e vã de choro é pior que o choro.
O jeito que ela se encaixava em você.
E adormecia sempre primeiro.
E como aquilo tudo foi ainda tão pouco?
Aquele ser infeliz ao lado dela, desejando não estar?
Era eu.

E aí as pernas ficam dormentes.
E é como a morte em vida.
E vai chegar o dia em que vocês estarão no supermercado
e se encontrarão num tedioso acaso,
mas olharão um para o carrinho do outro
tudo vai fazer sentido
nada vão estar sentindo
só inveja daqueles ovos
daquelas cervejas em promoção
aquele dia de amor na piscina
naquela tarde, ela disse que não.

E as flores que você mandou
as ruas bonitas de Buenos Aires
o latido do cachorro quando chego
o orgulho dela ser tão doce
os quebra-cabeças nunca montados
as tardes de amar sem medo
Ah, as tardes de amar sem medo!

Patrícias
Carolinas
Agora, quem são?

O jeito como ela me olhava.
O carnaval de nós dois
o barulho que o amor fazia
o calor quando você entrava
o frio quando a dor rangia
os programas imbecis na televisão
e o peito entalado na garganta
o choro doído de não ter volta
a vontade de pular da cama
de pular da ponte
de gritar seu nome
e dizer depois que

Obrigado.



Regresso

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

[Manuel António Pina]


  

domingo, 1 de julho de 2018

Patti Smith:

 “Pode-se dizer que sou uma devota da escrita, ou que a escrita é de mim. Sentimos devoção uma pela outra. Não posso imaginar minha vida sem escrever. Se só pudesse ficar com uma coisa, ficaria com a literatura.”

O DEMÔNIO

(1823)

Quando não me era ainda insossa
cada impressão da vida outrora
– rumor de bosque, olhar de moça,
canção de rouxinol na aurora –
e quando a liberdade, o amor,
a glória, as artes, o melhor
da inspiração e altas idéias
turvavam-me o sangue nas veias,
um certo espírito nefando,
trazendo angústia e me anuviando
horas confiantes de prazer,
passou, em sigilo, a me ver.
O nosso encontro era sombrio
e ele sorria com o olhar
cheio de escárnio ao me instilar
dentro da alma um veneno frio.
Pois caluniava sem receio
e desafiava a Providência,
julgava o Belo – um devaneio,
a Inspiração – tolice imensa,
o amor e a liberdade – vis.
E, olhando altivo, com profundo
desprezo, a vida, ele não quis
abençoar nada em todo o mundo.

_-_

O SEMEADOR
O semeador saiu para semear...

Eu semeador, deserto afora,
da liberdade, fui com mão
pura lançar, antes que a aurora
nascesse, o grão que revigora
no sulcos vis da escravidão.
Mas todo esforço foi em vão:
joguei vontade e tempo fora.

Pasce, pois eu te repudio,
ralé submissa e surda ao brio.
Libertar gado é faina ingrata,
pois gado se tosquia e mata.
Herda, por gerações a fio,
canga, chocalhos e chibata.

_-_

“DOM INÚTIL...” (26 de maio de 1828)

Dom inútil, dom fortuito,
por que a vida me foi dada?
E o destino, com que intuito
a condena a um fim: o nada?

Que poder hostil, do pó,
suscitou minha alma ardente
e lhe deu paixão, mas só
dúvida à minha mente?

Sigo a esmo de ermo peito,
mente ociosa e, sem saída,
pesaroso, eu me sujeito
ao maçante som da vida.

_-_

[Aleksandr Púshkin]

Só lhe devo desobediência #2

"Se a maioria prefere submeter-se, não é por madura reflexão sobre o bem e o mal que isto pode resultar, mas porque está, por assim dizer, hipnotizada. Obedecendo, os homens submetem-se simplesmente às ordens que lhes são dadas, sem refletir e sem fazer um esforço de vontade. Para não obedecer, é preciso refletir com independência, e isto constitui um esforço de que nem todos são capazes. Mas, caso fosse afastado o significado moral da sujeição ou da rebelião e consideradas apenas as vantagens materiais, se veria que a rebelião é, em geral, mais proveitosa do que a submissão."

[Liev Tolstói em O Reino de Deus]