domingo, 1 de julho de 2018

O DEMÔNIO

(1823)

Quando não me era ainda insossa
cada impressão da vida outrora
– rumor de bosque, olhar de moça,
canção de rouxinol na aurora –
e quando a liberdade, o amor,
a glória, as artes, o melhor
da inspiração e altas idéias
turvavam-me o sangue nas veias,
um certo espírito nefando,
trazendo angústia e me anuviando
horas confiantes de prazer,
passou, em sigilo, a me ver.
O nosso encontro era sombrio
e ele sorria com o olhar
cheio de escárnio ao me instilar
dentro da alma um veneno frio.
Pois caluniava sem receio
e desafiava a Providência,
julgava o Belo – um devaneio,
a Inspiração – tolice imensa,
o amor e a liberdade – vis.
E, olhando altivo, com profundo
desprezo, a vida, ele não quis
abençoar nada em todo o mundo.

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O SEMEADOR
O semeador saiu para semear...

Eu semeador, deserto afora,
da liberdade, fui com mão
pura lançar, antes que a aurora
nascesse, o grão que revigora
no sulcos vis da escravidão.
Mas todo esforço foi em vão:
joguei vontade e tempo fora.

Pasce, pois eu te repudio,
ralé submissa e surda ao brio.
Libertar gado é faina ingrata,
pois gado se tosquia e mata.
Herda, por gerações a fio,
canga, chocalhos e chibata.

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“DOM INÚTIL...” (26 de maio de 1828)

Dom inútil, dom fortuito,
por que a vida me foi dada?
E o destino, com que intuito
a condena a um fim: o nada?

Que poder hostil, do pó,
suscitou minha alma ardente
e lhe deu paixão, mas só
dúvida à minha mente?

Sigo a esmo de ermo peito,
mente ociosa e, sem saída,
pesaroso, eu me sujeito
ao maçante som da vida.

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[Aleksandr Púshkin]