quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Fera Oculta

 com a Inês

       para o Rodrigo

I

Durante essa tua natação de fera oculta
há um papiro que se desdobra na minha boca
e nunca o futuro teve o sabor
de palavras tão sobejamente pronunciadas
família rapaz umbigo
palavras com que se poderia redigir
tão pouca coisa
se não fosse a reinvenção da tua chegada
inscrita no mundo como pedra preciosa
que não é pedra
antes um modo inalienável de reluzir
pelos braços fora

Sei que haverás de te deslocar
timidamente
por estas ruas e prédios que bocejam
dos nomes que lhes deram
e que contigo terão uma razão mais forte
para conspirarem na longa malha
inanimada
em que se decidem os bichos
a que chamamos homens
e que tão pobremente os têm habitado — garanto-te —
à excepção de uma ou outra carne
mais obstinada em escapar
à bala comum

Para tudo isso terás tempo
ainda que rapidamente te dês conta
de que tudo é já tão tarde
eu próprio lamento o tempo que esperei
e que não terei para testemunhar
o incêndio dos teus olhos
o fruto magro que hás-de roer noite dentro
nalgum bairro de pormenor
quando o escasso amor que te deram
for o alimento oportuno
de um amor mais desenvolto
— estranho comércio, sim —
o tempo que não terei para nos lançarmos
os dois ao mar
nalguma noite desesperada
partilhando o sal de tudo largar
esse gosto tão raro
tão sigilosamente próximo

Perdoa a falta de graça
o tom melancólico a guerra
mas é que vivo numa época
que como muitas antes dela
repetiu os subsídios ao nojo
bateu o sangue em castelo
para se levar ao forno da ambição
deu uma sova às pequenas respirações
— sim, intersticiais, subtis, difíceis —
sem as quais um corpo é apenas
um estorvo à sua própria morte
percebes isso?
um estorvo à sua própria morte

Porque essas finuras de que te falo
são sem dúvida a única ousadia
frente à inevitável conflagração do espaço
— perdoa uma vez mais, eu reformulo —
tudo isto que ainda não vês mas verás
tudo isto que ainda não tocas mas tocarás
não durará mais do que a sua própria
experiência
e é essa a única lei
e é esse o único hino
país tão desabitado que festejas
cada desembarque como se te trouxessem
oceano

Se a eternidade fosse um espelho
o que mostraria?
Isto agora porque é aqui
que vive a luz e é esta a paisagem
que nenhum deus pode apagar
senão à custa da sua fome
não receies por isso deus nenhum
nem eternidade nenhuma
a tua carne é o único tesouro
— sei-o enquanto nadas —
digno de ser embrulhado pela treva

II

Sem saber ainda os traços do teu rosto
sei que me reconhecerei em ti
não fisionomicamente
mas no que é comum a todos os corpos
esses tropeços primeiros que a memória não segura
para que nada possa ser comparado
com o júbilo da encarnação
com a extrema vulnerabilidade
capaz de concentrar em si
as apostas circundantes

Gostaria no entanto de te receber
num outro lugar
não neste boi tombado
que dá pelo nome de vinte e um
peso morto arrastado pelos cornos
apenas para que não o devassem
as moscas
— aprenderás a amar também o trabalho alquímico
das moscas
a sua centralidade nas salas
como se pudessem medir todo o espaço
e concluir que é no meio —
um outro lugar mais consentâneo
com o uso dos dentes
com a urgência de cuidar
com as loucas passadas dos cães

Sinto já a força dos teus dedos sucintos
em torno do meu polegar
o calor que esbanjamos em cada gesto
na imensa consanguinidade
das coisas vivas
não há como fugir-lhe
vamos de mãos dadas com o que nos rodeia
em ininterrupta dedicatória
os dados são lançados e apanhados
sem tocar a mesa
e a sorte sai conforme
a sorte que se der
pois de tudo se sabe apenas
a medida da sua entrega

De ti carregarei até ao fim
o anúncio cardíaco em pleno silêncio
a ruína de uma espécie de solidão
que se julgava inamovível
e que a correnteza dos teus tambores
os cascos do teu nome incógnito
esboroaram num segundo
para no seu lugar
instaurarem uma costura
que nos entrança pelos pulmões
o número 3 deitado / como barca frente às vagas
a equipagem para o futuro

Ouço-te nadar sempre nestes meus dias
de náufrago posto em estrela
sobre as águas
e assim estarás tu também
no teu elemento
os dois talvez quietos
e ser ela quem nos encurta aos dois
para o seu ventre alucinado
a mulher que transpôs comigo
o limiar do cinismo
a angústia do salão espelhado
a tua mãe

III

Os momentos em que a claridade
é um capricho dos eléctricos
e os corpos se demoram nas praças
como se de fato houvesse alma
e devêssemos salva-la
da crueldade e do tédio
são esses os momentos que te desejo
nalguma cidade futura
nalguma encruzilhada de gente
mas sobretudo que haja eléctricos ainda
pois é à janela levantada
de um eléctrico
que a realidade é premente
e o vento toda história do mundo.

Vem isto a propósito
do cansaço em que ando
e que nada tem a ver com a matéria
da existência
– da qual és ainda magma –
antes com este logro quotidiano
em que um homem e uma mulher
se esfalfam para manter à tona
a ampulheta instável dos seus nomes
quando esse punhado de areia
subtraído à erosão dos deuses
merecia o sopro pleno
de um dia sem rodeios
um batismo mais vasto e súbito
que não prendesse cada coisa
aos seus próprios pés

Se algo tiveres absolutamente de fazer
que seja a travessia
das cerradas cordilheiras interiores
em que acabarás por tropeçar
não que sejas empurrado para lá
mas porque vivem numa espécie
de maturação do sangue
que mais do que a pretensa inclinação
dos teus músculos
deverás escutar
os animais noturnos as febres
a tua solidão pactuada
com a longínqua saga
dos que se despenham
em busca de um estrondo musical
pequeníssima nota reverberada
entre pálpebras
que só os escafandristas
puxam para a altura do olhar

Ter dos teus lábios essa sílaba nítida
de língua nenhuma
mera articulação de uma água antiga
que me pende sobre a cabeça
essa a espada que me falta
e que me permitirá afugentar
a angústia da pouca vida
que sempre nos pertence
recuando aos vocábulos indefesos
com que a paisagem
nos entra pela garganta
e nos alaga os pulmões

Ninguém sabe ao certo
com que esmero será capaz de arrombar
a frágil película das horas
e pilhar esses instantes de fraternidade
com o espanto de existir
porque é verdadeiramente digno de pasmo
que uma coisa se precipite
contra a lápide da sua própria duração
e se ache na veleidade de dizer
que está aqui
ponto de chegada
na atribulada imaginação do espaço

IV

Que não te enganem
os que compram as horas por atacado
para do teu suor extraírem
a bandeira de um país que nunca será o da atenção
que nunca será o da morada
mas sempre e sempre
o território homeopático da extinção
em que os troféus são
joelhos vergados à condição de cera
para os soalhos do progresso
cujo verdadeiro nome é
despovoamento

Vender-te-ão o conforto
a perseverança o brio
como se tivéssemos por fito
a acumulação do tempo
sem o fruirmos boca a boca
desesperadamente
garantir o futuro dir-te-ão
sem repararem na estupidez do repto
pois que poder temos nós
sobre as válvulas biológicas
do nosso prazo
para nos arrogarmos a garantir
o que quer que seja
quanto mais o sumo fruto da inexistência
esse futuro-cano-enfiado-na-boca
para ser disparado sem falta
de manhã e ao deitar

Em volta sucedem-se clarões
e abismos inóspitos
os elementos torcem-se na pesca à linha
dos lugares fundamentais
há uma convulsão de panoramas
para o brevíssimo turismo
dos olhos
mas o importante é a matemática mesquinha
do sangue que furtamos uns aos outros
a medalha de carne pútrida
com que esperamos aparecer
na fotografia da época

Que se foda a época
digo-te já
que se foda a sépia dos futuros
eu quero aparecer no dia
do teu nascimento
desarmado como uma árvore
sem outra missão que não
amparar-te o susto
e dizer-te baixinho
bem-vindo ao continente dos frágeis
podes parar de nadar

(…)

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

sob o céu sem estrelas

 continuo só.

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Amorango

 Um pé de amorango

Tem folhas verdes

Da cor dos seus olhos

Se você usasse lentes

O tempo passou

Só ficou a gente

Comendo amorangos

Nesse tempo quente

Será que faz mal?

Não quero ficar doente!

E ter que mostrar a língua pro doutor...

Que horror! :o

Estou tão romântico 

Falando de amor :3


- João Paulo Costa Souza, de presente de aniversário, um dos melhores que já recebi hihih 2016, talvez

sábado, 23 de julho de 2022

Cartas para um jovem poeta [trecho]

 "[...] por fim, gostaria apenas de aconselhá-lo a passar com serenidade e seriedade pelo período de seu desenvolvimento. Não há meio pior de atrapalhar esse desenvolvimento do que olhar para fora e esperar que venha de fora uma resposta para questões que apenas seu sentimento íntimo talvez possa responder, na hora mais tranqüila."


Com toda devoção e toda simpatia, Rainer Maria Rilke

quinta-feira, 5 de maio de 2022

"Ideologia nenhuma,


antes
 nem
 depois,
 foi
 tão
 convincente
 para quem
 exercia
 a
 hegemonia,
 nem
 tão
 inelutável
 para
 quem
 a
 sofria, escravo
 ou
 vassalo.
 Desapossados
 de
 suas
 terras,
 escravizados
 em seus
 corpos,
 convertidos 
em 
bens 
semoventes 
para 
os 
usos 
que 
o senhor
 lhes 
desse, 
eles
 eram
 também
 despojados
 de
 sua
 alma.
 Isso se
 alcançava
 através
 da
 conversão
 que
 invadia
 e
 avassalava
 sua própria
 consciência,
 fazendo‐os verem‐se 
a
 si
 mesmos
 como
 a pobre 
humanidade
 gentílica
 e
 pecadora 
que, não 
podendo 
salvar se 
neste 
vale
 de
 lágrimas,
 só
 podia
 esperar,
 através
 da
 virtude,
 a compensação
 vicária
 de
 uma
 eternidade
 de
 louvor
 à
 glória
 de
 Deus
no 
Paraíso.




Tal 
é 
a 
força 
dessa 
ideologia
 que
 ainda
 hoje 
ela 
impera, sobranceira.
 Faz 
a 
cabeça
 do
 senhorio
 classista
 convencido
 de
 que orienta
 e
 civiliza
 seus
 serviçais,
forçando‐os 
a 
superar 
sua 
preguiça inata
 para 
viver em
 vidas 
mais
 fecundas
 e
 mais
 lucrativas.
 Faz, também,
 a
 cabeça
 dos
 oprimidos,
 que
 aprendem
 a 
ver 
a
 ordem social
 como
 sagrada
 e 
seu 
papel 
nela
 prescrito
 de
 criaturas 
de 
Deus em
 provação, 
a 
caminho
 da 
vida 
eterna.



Essas 
linhas 
de 
formação correspondem,
 no 
lado 
nórdico {América do Norte},
 à
 formação 
de um 
povo 
livre, 
dono 
do
 seu 
destino, 
que
 engloba
 toda 
a
 cidadania
 branca.
 No
 nosso
 sul {América Latina},
 o
 que
 se
 engendra
 é
 uma
 elite
 de senhores
 da
 terra
 e
 de
 mandantes
 civis
 e
 militares,
 montados
 sobre a
 massa
 de
 uma
 subumanidade
 oprimida,
 a
 que
 não
 se
 reconhece nenhum
 direito.
 A
 evolução 
de 
uma 
e 
outra
 dessas 
formações
 dá lugar, 
nas 
mesmas
 linhas,
 de
 um
 lado,
 ao 
amadurecimento 
de 
uma sociedade 
democrática, 
fundada 
nos
 direitos
 de
 seus
 cidadãos,
 que acaba
 por
 englobar 
também
 os
 negros.
 Do
 lado
 oposto,
 uma feitoria
 latifundiária,
 hostil
 a
 seu
 povo
 condenado
 ao arbítrio, 
à
ignorância 
e 
à 
pobreza.




No
 plano
 histórico‐cultural,
 os
 nórdicos
 realizam
 algumas
 das potencialidades
 da
 civilização
 ocidental,
 como
 extensão sensaborona
 e legítima 
dela. 
Nós,
 ao 
contrário, 
somos
 a
 promessa de 
uma 
nova 
civilização
 remarcada 
por 
singularidades, principalmente
 africanidades.




Já
 por
 isso,
 aparecemos
 a
 olhos
 europeus
 como
 gentes
 bizarras,
 o que,
 somado 
à 
nossa 
tropicalidade
 índia,
 chega
 para 
aqueles
mesmos olhos
 a
 nos
 fazer 
exóticos.




Não 
somos 
e 
ninguém
 nos 
toma 
como
 extensões 
de 
branquitudes, dessas
 que
 se
 acham
 a
 forma
 mais
 normal
 de
 se
 ser
 humano.
 Nós não.
 Temos
 outras
 pautas
 e
 outros
 modos
 tomados
 de
 mais
 gentes. O
 que,
 é
 bom
 lembrar,
 não
 nos
 faz
 mais
 pobres,
 mas
 mais
 ricos
 de humanidades,
 quer dizer,
 mais
 humanos.
 Essa
 nossa
 singularidade bizarra
 esteve
 mil
 vezes
 ameaçada, 
mas 
afortunadamente
 conseguiu 
consolidar‐se.
 Inclusive 
quando
 a 
Europa
 derramou
multidões 
de 
imigrantes 
que 
acolhemos
 e 
até 
o 
grande
 número
 de
 orientais
 adventícios
 que
 aqui
 se
 instalaram.
 Todos
 eles,
 ou
 quase
todos,
 foram
 assimilados
 e 
abrasileirados."

 livro O POVO BRASILEIRO de DARCY RIBEIRO; capítulo 3 O PROCESSO CIVILIZATÓRIO, páginas 72 e 73