quinta-feira, 14 de maio de 2020

Sonhei

Sonhei que estava morta
Vi um corpo no caixão
Em vez de flores eram Iivros
Que estavam nas minhas mãos
Sonhei que estava estendida
No cimo de uma mesa
Vi o meu corpo sem vida
Entre quatro velas acesas

Ao lado o padre rezava
Comoveu-me a sua oração
Ao bom Deus ele implorava
Para dar-me a salvação
Suplicava ao Pai Eterno
Para amenizar o meu sofrimento
Não me enviar para o inferno
Que deve ser um tormento

Ele deu-me a extrema-unção
Quanta ternura notei
Quando foi fechar o caixão
Eu sorri… e despertei.

– Carolina Maria de Jesus, em “Antologia pessoal”. 


Quarto de despejo

Quando infiltrei na literatura
Sonhava so com a ventura
Minhalma estava chêia de hianto
Eu nao previa o pranto. Ao publicar o Quarto de Despejo
Concretisava assim o meu desejo.
Que vida. Que alegria.
E agora… Casa de alvenaria.
Outro livro que vae circular
As tristêsas vão duplicar.
Os que pedem para eu auxiliar
A concretisar os teus desejos
Penso: eu devia publicar…
– o ‘Quarto de Despejo’.

No início vêio adimiração
O meu nome circulou a Nação.
Surgiu uma escritora favelada.
Chama: Carolina Maria de Jesus.
E as obras que ela produz

Deixou a humanidade habismada
No início eu fiquei confusa.
Parece que estava oclusa
Num estôjo de marfim.
Eu era solicitada
Era bajulada.
Como um querubim.

Depôis começaram a me invejar.
Dizia: você, deve dar
Os teus bens, para um assilo
Os que assim me falava
Não pensava.
Nos meus filhos.

As damas da alta sociedade.
Dizia: praticae a caridade.
Doando aos pobres agasalhos.
Mas o dinheiro da alta sociedade
Não é destinado a caridade
É para os prados, e os baralhos

E assim, eu fui desiludindo
O meu ideal regridindo
Igual um côrpo envelhecendo.
Fui enrrugando, enrrugando…
Petalas de rosa, murchando, murchando
E… estou morrendo!

Na campa silente e fria
Hei de repousar um dia…
Não levo nenhuma ilusão
Porque a escritora favelada
Foi rosa despetalada.
Quantos espinhos em meu coração.
Dizem que sou ambiciosa
Que não sou caridosa.
Incluiram-me entre os usurários
Porque não critica os industriaes
Que tratam como animaes.
– Os operários…

– Carolina Maria de Jesus, em “Meu estranho diário”