domingo, 3 de dezembro de 2017

“A Goeldi”

De uma cidade vulturina vieste a nós,
trazendo o ar de suas avenidas de assombro
onde os vagabundos peixes esqueletos rodopiam
ou se postam em frente a casas inabitáveis
mas entupidas de tua coleção de segredos,
ó Goeldi: pesquisador da noite moral sob a noite física.

 Ainda não desembarcaste de todo
e não desembarcarás nunca.
Exílio e memória porejam das madeiras
em que inflexivelmente penetras para extrair
o vitríolo das criaturas
condenadas ao mundo.

És metade sombra ou todo sombra?
 Tuas relações com a luz como se tecem?
Amarias talvez, preto no preto,
fixar um novo sol, noturno; e denuncias
as diferentes espécies de treva
em que os objetos se elaboram:
a treva do entardecer e a da manhã;
a erosão do tempo no silêncio;
a irrealidade do real.

Estás sempre inspecionando
as nuvens e a direção dos ciclones.
Céu nublado, chuva incessante, atmosfera de chumbo
são elementos de teu reino
onde a morte de guarda-chuva
comanda
poças de solidão, entre urubus.

Tão solitário, Goeldi! Mas pressinto
no glauco reflexo furtivo
que lambe a canoa de seu pescador
e na tarja sanguínea a irromper, escândalo, de teus negrumes
uma dádiva de ti à vida.

Não sinistra,
mas violenta
e meiga,
destas cores compõe-se a rosa em teu louvor.

[Carlos Drummond de Andrade]